26.1.12

Preito

A fera que descansa em meu peito
É a mesma que fere meu jeito
Contorce sem cura a febre de leito
Amortece em jura o ai do mal feito...


Eu aqui sujeito
Imperfeito
Da agrura eleito
A despeito
Respeito
Satisfeito
A fissura
E a tristura
Sem perder a mesura
De fazer proveito
De todo defeito.


Casciano Lopes

16.1.12

Manto uno

Muito tênue...
A linha que divide um país
A fenda que parte uma ilha
A rachadura que desloca um bloco
O tremor que racha um continente
O temor que separa culturas.
O mesmo sentido de vida...
Pulsado em cada canto de olhar
Que morre largado ou abrigado
Como vive cercado ou alagado
Que chora da mesma forma amada
Como sorri com beleza espalmada
A mesma junção de instrumentos...
Aborígenes
Índios
Esquimós
Beduínos
Negros
Brancos
Incas de seus Maias com seus Astecas
Uma África com suas índias americanas
Tão latina quanto européia suas asiáticas.
Tão sul quanto norte seu centro oeste
Latitudes e longitudes com seus trópicos
Hemisférios com seus polos em sementes
Seus rios em pólen e suas colmeias em línguas
Tão raça quanto humano no pulsar
De oceanos verdes, azuis turvados
Do mesmo sentir, da mesma forma de navegar,
Quebrando ondas na costa, nas pedras,
Nas areias do mesmo mundo
Do mesmo sentido da poesia
Na construção da pele única como um manto
Enxergando belo com a beleza dos retalhos.


Casciano Lopes

13.1.12

Brasil sem herança

Não reconheci sua etnia
Não ouvi a sua língua
Não vi seu mundo
Não passei por sua oca.


Sem o verde das matas
Sem lenha ou tora
Sem fogo, sem barro
Sem seios ou rituais.


Sem face ou tintas
Sem caça e música
Sem meninos na cintura
Sem mitos e "Deuses".


Sentada, bem ali, na passagem do "cidadão civilizado", numa rua qualquer do bairro da Lapa, da grande cidade que recebe o nome de São Paulo, estava ela: uma linda índia, pele de índia, cor de índia, de cócoras como uma índia, os traços eram indígenas.

Só não era de índia: a roupa maltrapilha que usava, o chão de concreto que pisava. Não era de índia: os brancos que a ignoravam. Não era indígena: a vergonha do país, as poucas moedas que estavam ali numa vasilha substituindo os típicos pratos feitos de cócoras lá na aldeia.
Não era indígena!

Não era coisa de índio...
Sem arco e flecha...
Sem cacique...
Sem água doce...
Era coisa de Brasil!

Um país sem herança...
Sem cores...
Sem memória...
Sem vermelho na terra...
Coisas de Brasil.

Casciano Lopes




Em meados de janeiro deste ano [2012] recebi, por e-mail, um convite do jornalista romeno DANIEL DRAGOMIRESCU para seguir o blog de uma revista multicultural  (CONTEMPORARY LITERARY HORIZON  [Horizonte Literário Contemporâneo] Official media partner of MTTLC, University of Bucharest) que reúne escritores de todo o mundo, apaixonados pela cultura contemporânea. A HLC é uma revista independente e publicada em quatro idiomas, Romeno, Inglês, Espanhol e Português e conta com o apoio da Universidade de Bucarest.
Na mesma ocasião, Daniel, o editor chefe da revista, solicitou que eu contribuísse com um trabalho para a revista. Enviei o poema [Brasil sem herança] que transcrevo abaixo e que fala de uma faceta da nossa cultura onde vemos elementos e personagens étnicos deslocados e desvalorizados em nosso meio, especialmente o urbano que devora o natural. Esse poema foi publicado no número 1 (27)/2012 da HLC em português e romeno.
Na revista on line é possível conhecer o trabalho de outros poetas e escritores brasileiros como: Oziella Inocêncio (jornalista e colaboradora da revista, de Campina Grande), Vogaluz Miranda (de São Paulo), entre outros. Para quem quiser conhecer e prestigiar o bonito trabalho desenvolvido pela equipe da HLC basta acessar http://contemporaryhorizon.blogspot.com. Vale a pena.

12.1.12

O sonho de meu medo

Minha vida toda
Meus embaixos
Meus baixos
Meu tempo de sul.
Nem sei se quero
Ir para o norte
O sul tem raízes
O que se avista.


Tanto medo
Quanto saudade
Sonho quanto insônia.
Leio o que toca as mãos
O que perdeu-se da pele.
Gosto de meu sul
Mas sinto falta...
De meu pulso.


Casciano Lopes

Seguindo as regras

Canso de gentilezas com o desconhecido,
Abraço e beijo o tal conhecido,
Mas me interroga a natureza.
Tão descabida se torna a franqueza,
Meu rosto sorri ante o povo que construí
Impeço em súplicas mais um momento,
E ele acontece, por cima de minhas vontades,
Como se rolasse em compressor a minha procura,
Me fazendo humor da tortura,
Arranhando a alma que pede fim ou recomeço.
Me agonia o bem fingido,
Fico mal com o não resolvido,
E o filme rola as cenas,
Aos de minhas poltronas gastas.
Me acordam os pesadelos da fama,
Machuca a ânsia de viver cada personagem,
E me sinto dirigido pelo que desacredito,
Sou câmera e volante do destino pastelão,
Sou o peixe engasgado do anzol,
Da linha o cerol,
Da pipa cortada o voo cego plainando,
Sobre árvores desconhecidas,
Se nelas me enrosco, morro só...
Se a deriva vou no vento, morro fisgado.

Casciano Lopes

11.1.12

Complexo ato

É como tango latejando em meus compassos
Me fazendo imaginar o indizível da dança...
Aquela elegância gesticulada
Os corpos geminados
Sem se quer ter ensaiado um passo
Sem ter pousado em Buenos Aires
E de Gardel apenas canções ouvidas
Em vitrolas distantes.
É o espetáculo encenado em teatros jamais vistos
Tablados montados em salas da ficção
O espaço cultural da arte imaginária
De um cérebro desprovido de ócio
Toque melodioso, com dedos e sem piano
O vago, o misterioso.
É a imagem que se forma, que se vai
Aquela que acorda e desperta
O ser em movimento repousado
Transloca e desloca o órgão
Levado de toque em toque
Sensação fria de ardor fugaz
Temor que cai, corta e sai.
Viagem por castelos e Europa
Medievais, bosques, expressão de séculos
Em gemidos de arquitetura
Talhada, pintada de ilusão
Realidade difusa, confusa, lambuza as mãos
Molha, salga e adocica, amarga o êxtase
A solidão...
Visível na pele rachada
Tachada de eu
Conjugada na primeira pessoa do tempo rasgado
Do complexo comigo.


Casciano Lopes

Revisão

Neste tempo procuro reconhecer
As dobraduras de minhas roupas
E me perco entre velhas costuras.


Descubro em cada palpitar
Que o passado de cada dia
O tornam mais interessante.


Vivo, para ver e sentir o cheiro,
Em cada suspiro respiro vontades
E inspiro soluços de amanhã.


Passando a limpo os ditados escolares,
Os ditos populares e os que encontro
Pelos bolsos da velha calça.


De novo reinvento meu homem,
Novo, vestido de novo, sem abandonar
O velho ontem, um ontem qualquer.


Casciano Lopes

10.1.12

Caminhos

O pior dos caminhos é o solitário
O faltante da mesa
O caminhante que não chega
A refeição só
O pão só
A sede da garganta
A falta de com que molhar
A velha cadeira abandonada
O balanço sem corpo pra impulso.
O pior dos caminhos é o escuro
Tateando cego os espinhos
As serpentes esmagadas ou não
As trombadas sentidas e não vistas
As lágrimas brotadas sem vistas
Os joelhos cicatrizados do embate
O combate das guias, dos guias e sinais
Fechados, cerrados, nunca abertos.
O pior dos caminhos é o desequilibrado
Os tombos públicos não acudidos
A sepultura viva dos cárceres
A lápide que sela em vida um ser
As correntes que crucificam loucos
A perseguição do entorpecido
O enjaulado dos quartos em porões
O delírio dos que perderam suas próprias escrituras.
O melhor dos caminhos...
Se deixar ferir sem nunca perder a consciência do bem
Permitir uma ferida, só até onde consiga a cura
E nunca faltar pão, muito menos com quem dividi-lo.


Casciano Lopes

Dias intensos

Dias intensos, independem de condições meteorológicas, dependem puramente de sentimentos intensos.
Há verão na minha vida, de sol escaldante, como há dias, de inverno causticante nos ossos da alma.
Há dias, em que penso a vida como quem mastiga um rolo de fumo, que divago no tempo, como quem tempo não tem para arrependimentos.
Nunca me senti tão só, como hoje me sinto. A temperatura fugiu dos termômetros e a vista divaga perdida por sobre os ombros, buscando só uma visão, mesmo que miragem, de um perdido qualquer que faça companhia ao órfão colo.
A falsa liberdade a mim imposta, aposta no cárcere de meus pés e na branquidão de meus cabelos torpes, delira minha pele e as cores enegrecem dentro de um navio submerso no oceano de meu peito, os dedos já embrutecidos encostam só a porta solitária de uma brecha perdida dos caminhos sem volta, olhos parados tentam empurrar meus submarinos pelo que acreditam.
Quanto frio nos nervos de minha terra! Quanta composição esquecida e quanta letra não desenhada! Quanta lentidão em meus sistemas! Quantas amoras guardadas no celeiro da colheita passada!
Sinto a calma ralentando e a música mais que triste sussurrando aos ouvidos seu enfado. Conta fados e canta seus portugueses lamentos, tendo meu chão como palco, meu quinhão rachado e encoberto por daninhas famintas, que me lascam os calcanhares.
Intenso como tenso meu inverno, descoberta a coragem fracassada e desafia a alma não mais ensolarada a dar mais um suspiro afinado, a cobrir de verde um jardim tão desmatado e a plantar nas covas a semente do verão passado.
Que me ajudem abutres, se me falharem os homens, no plantio e na colheita desse intenso...

Casciano Lopes

Morro ou morro?

Morro...
Presente nas ruelas,
Dos becos sem saída,
Dos guetos do feio,
Das estreitas passagens,
De apertadas paredes,
De portas caiadas sem luxo,
De esconder fúnebre destino.
Morro...
Ausente da cidade,
Corcova a vista de tábuas,
Embelezando a distância do horizonte,
Morrendo morro na vizinhança,
Desgraçando a beleza nos remendos,
Nos tijolos a vista,
Não vermelhinhos encerados,
Mas sem vida de reboque,
Sem trato e projetos.
Avariado pelo que dizem social,
Vida do jeitinho,
Das sobras do possível,
Futuro sem caminho,
O aperto sem luz ou túnel,
Da morte, um morro de divisor,
Um arco estacado no asfalto,
Um invisível "Berlim".
Sentido...
Morro acima gente sobe viva
Pra morro abaixo descer pobre.
Todo dia morro...
Todo dia...
Morro.


Casciano Lopes

Água de luto

A tempestade veio banindo num assobio
A luz do dia e as folhas secas da estrada,
Regendo ventos que num crescente
Passaram de calmos e rasteiros para bravos e ceifeiros,
Deixando árvores como arbustos e estes como grama.
O céu já não mais tomado de seus azuis
Deu lugar ao arroxeado sem estrelas
Que logo se enegreceu de luto,
Sem pedir licença, desceu à lavar toda lua,
Todo o sol. Enquanto se desmanchavam nuvens,
Pássaros de penas e de aço banhavam-se
Na imensidão de águas doces de mares suspensos,
Enquanto no fim da queda, quebravam suas ondas
No pasto que se embebedava ou no rio que transbordava.
Numa encruzilhada de terra batida já sem sua relva,
Três figuras imóveis observavam o desmantelo:
A santa branca do caminho,
A cruz de estacas fincada
E a lembrança que plantou a cruz.


Casciano Lopes