Você já sentiu que uma árvore na calçada te curou? Uma pétala de flor ou uma folha seca voando solta na ventania, uma música antiga tocando no rádio do vizinho ou uma nova reproduzida no seu celular, um abraço de um velho amigo, um sorriso de criança... já foi curado assim?
De uma dor, de um medo, de um susto, de uma angústia ou solidão... curado, cuidado, já foi?
Já olhou pra um possível novo amigo? Já fez um elogio hoje? Já dividiu sua mesa, seu casaco de frio hoje? Cure.
Das bandeiras trêmulas e dos conflitos que as aguardam, por onde andam?
Namorados eternos garantem um pacífico espírito perante o tempo que não os torna impune diante do seu efeito, mas imune aos danos, garantindo a natureza dos fatos, sem alarde como fazem os ventos que sopram os namorados.
Casciano Lopes
Ao meu eterno namorado Carlos Lopes em 12 de junho/25
Um super homem não se faz com grandes elaborações, ou aquele sucesso que se espera dos que erguem majestosos edifícios.
A maior conquista é se manter digno e íntegro no balanço da vida, estar orientado na corda que dança a música do tempo, ser aprendiz da alegria e não ter medo além da conta do que se é... um super homem, feito da capacidade de se ver.
O escuro que me espreita na esquina que tenho que passar, não deixa sombra em mim. Porque o corpo de lamparina que carrego, onde moro, possui um jeito de promessa, onde todo dia juro atravessar minha escuridão sem perder a claridade que me prometeu distância segura do breu.
Sou bom de me contar histórias, de instantes falar, de mim ouço contação, pra mim digo contos, me presto atenção, e penso que esse é o motivo pra continuar me ouvindo. É uma forma de ter sempre mais pra me contar.
Há falas inteiras que dispensam palavras, silêncios escandalosos, recuos sem margens de contenção, discursos executados, exaltados entre as linhas mudas dos palanques desativados. Analfabetos modos.
Implícito jeito de dizer.
Há leituras feitas na caligrafia invisível do livro das páginas brancas, narrações alcançadas pela licença da suposição, audição elaborada pela livre interpretação. Alfabetizado recurso de quem não entende, mas sente.
Minha agonia está longe dos laudos médicos, vai muito além dos consultórios. A razão da pena não está nas limitações visíveis, está aquém da pretensão de qualquer terapia; onde o que se propõe e o que se espera, é que eu fale de mim, sobre o que falta e o que cala minha pauta.
Tenho pra mim que não há o que dizer do que falta, pra ausências é impossível emprestar expressão, ninguém conhece uma dor sem tê-la, enfim, a amputação pode ser realidade, tanto quanto eu, o silêncio interno que a diagnostica está subjetivado, está tão dentro e reservado, que perdeu o seu nome pra agonia.
Talvez quando Oswaldo Montenegro disse: "que a corda não sabote o equilibrista", ele falasse da correção a que alguns se submetem, dos sonhos de que outros se alimentam, da inerente vontade não cumprida, do merecimento tardio, do reconhecimento atrasado ou da saudade vencida quando já não se tem o tempo pra dizer, quando os ouvidos se mudam pra distante... talvez do tempo dissesse o que nem precisaria dizer, não fossem as réguas tão altas, não fosse a condição da corda a de desafiar o passo.
Quando me vi, estava assim, sem o pó que disfarça o rosto, sem a febre que arde os termômetros, sem o sono que castiga os lençóis, sem a feira que faz gritar o feirante, sem a roda que faz correr a água do monjolo... Quando assim me vi, quase rudimentar, quase antigo na prateleira de poeira, eis que venta lá no quintal de meu esquecimento, e as amoras caem dos pés, eu caio em mim; tingimos nosso chão de tudo que esperou ventar o vento esquecido.
Instantes me espreitam nos passeios da minha mente, catalogados na estante da sala, conseguem me ler no sofá.
Amantes do tempo que se instalam, conhecem o caminho da cama pra me abraçar de corpo inteiro, estão por toda a parte, tropeçam nos meus tapetes, esbarram no meu constante jeito de pensar as cortinas, arranham a lousa que tenho no corredor, onde fixo lembretes com alfinetes coloridos... instantes.
Eles se encaixam entre a mobília, se espremem entre a cintura e o pescoço da minha casa, às vezes bagunçam gavetas, mas organizam em mim o que devo lembrar, o que preciso esquecer, e dentro do meu pequeno espaço, o que dói sabem esconder... instantes.
A gente podia dar uma volta de mãos dadas naquela rua antiga, só pra colocar a risada em dia, ir naquela pracinha que tinha um coreto, sentar naquele banco rodeado de canteiros de kalanchoes, só pra falar de abraços. A gente podia cantar bem alto aquela canção engraçada, a que nos apresentou naquele parquinho, e de novo lá, pegar carona na roda gigante pra comer pipoca, enquanto do alto fotografa a cidade numa máquina fotográfica.
Rebobinar aquele velho filme, onde a alegria nunca tinha pressa e o calçamento de paralelepípedos terminava naquela lojinha de artesanato, onde vendia de tudo, até amuleto de espantar tristeza...
Na casa de minha criança moram todos os sonhos aprendidos ainda na infância... quando menino fiz a casa de caixa de papelão, cresci junto com ela, hoje ela vive no peito, com telhado gasto, chão de assoalho riscado de anos; um risco pra cada um, as cores das paredes que os lápis pintaram empalideceram.
Ainda vivem sonhos na casa, o menino ainda mora nela, e eu só vivo porque sou a caixa que sonha.
Esperar carrega a esperança na força do verbo. A efetivação do milagre depende da persistência que este verbo traz, ele tem a resiliência como parceira e a paciência como coadjuvante.
A noite tem a certeza de que o dia vem, e conjuga calada esse aguardar independente de ponteiros; não é adiantando o relógio que a convenceremos de que findou seu breu.
Nascemos em estado de possibilidades, em alguns casos nasce conosco o nosso complemento divino que tornará possível a vida fora de casa.
O que viemos pra escolher também nos escolhe... pode demorar o encontro, mas depois de acontecido, todo dia se repetirá esse alguém que auxilia a travessia do mundo no caminho de volta.
Como diz um poema de Viviane Mosé: "o tempo anda me comendo"...
Todo dia quando acordo e me olho no espelho do banheiro, pergunto pra ele daquele cara. Incito provocação no tom do olhar, como que pra intimidação, e ele me ignora dando de ombros, quase rindo dos minutos que passam levando a pergunta e quem perguntou ...todo dia.
No decorrer das horas que se seguem, nos afazeres que começam com o ato de fazer o café, continuo incomodado, como que esperando a resposta enquanto espero a água quente lavar o pó. E foi nesse momento, ontem, com a boca esperando e salivando o gole que ainda viria que entendi:
A gente é só o pó que passa pelo tempo, o resultado dessa ação é o que dá o gosto de querer ficar, mas passa porque tem que passar.
Escasso jeito, esse que cuida de uma lágrima antes que caia, este que ampara sem pedido... só porque sabe, como com compasso, medir a necessidade do amor. Então, esquece o lapso, o relapso modo da espera do grito que parte do clamor de corpos banhados de choro caído, escorrido feito goteira pelo descabido abrigo sem eira nem beira do desamparo, que pra não o chamarem de lar, o apelidam de lugar devasso.
Escasso não é o mal feito enfeitado de gente, é gente enfeitada de bem.
Nós precisamos saber que um copo de cerveja postado, sempre chamará mais atenção que todo o caminho que fazemos longe das câmeras; prostrados muitas vezes na canseira dos dias derramada em nossa mesa particular ou estirada em nossa cama de pensar, sem qualquer glamour ou motivo de admiração por esse copo suado que carrega nossos goles de exaustão.
A gente não ensaia o que não tem aviso, nunca está preparado pro susto, assim como nunca está pronto pra estar só e sem autonomia, sem voz pro grito, sem auxílio pro medo. Precisa sim é se reconhecer mais destemido, mais capaz de existir que de fingir vida.
E que se faça sabido em nossa vida diária, que o amor ergue do chão porque é força, nosso maior aliado no esforço de ser apenas possível.
A luta sempre será comigo, sei que sou meu oponente no que diz respeito ao desafio de fazer mais e melhor.
Sempre restará um objetivo pra alcançar, atingir ou não uma meta não é a questão, os métodos sim, precisam estar de acordo com a dignidade, e isso importa mais; como o caminho que conta mais que o destino.
Tenho um princípio aprendido: jamais ter vergonha de mim, ter atitudes que conversem com minhas falas e pensamentos; coerência.
É comum morrer e continuar vivendo, a gente morre quando os braços se encurtam para o outro, quando mente e acredita na mentira de que é bom, e de que o outro carrega a maldade do mundo, quando justifica a própria ineficiência sempre fora de si, quando se torna surdo porque é mais importante falar, quando a dor alheia deixa de merecer curativo, porque a nossa tem destaque de emergência...
a gente pode morrer enquanto vive, o problema será o odor.
No espelho da minha alma a vida colocou moldura, e ensinou que a transparência nos faria refletidos nele como uma aliança forte, desde então, não somos um, o que nos une transcende o corpo que é falível, supera os dias que são refletidos muito além do que o que pode ser tocado.
Foi junto ao mar que banhamos nossos melhores momentos. Salgamos para sempre como em conserva nossos encontros diários... porque é preciso se encontrar todos os dias, é necessário se olhar, e assim se dizer nos olhos do compromisso de mar... navegar, deixar ir e vir, se aprofundar, tocar horizontes, quebrar na areia fazendo praia, amparar os corais, oferecer colo para o sol e cama para a lua, acolher os rios que chegam e a chuva que passa, ser cenário da tempestade sem deixar morrer o palco onde bailam os ventos que atuam num ato de sal.
Eu corro para a poesia toda vez que o espelho da penteadeira esquece quem sou...
Sim, vez ou outra me sento no banquinho de pés torneados e antigo, me olho refletido e eu próprio me demoro perceber. Tocar os fios brancos de meu cabelo requer um esforço que só um velho faz, e aí sei porque ele demora me encontrar... espelho, e só se lembra de mim, quando o fito nos olhos para dizer o verso que é ter um móvel de pentear.
Decidi ser quem sou de propósito, deixar de morar no caos me ajudou nesse processo, é claro que todos os dias me espremo entre os vãos do que sou.
Tenho rachaduras em mim, sei que os traumas que me deixaram desconfiado, também me informaram de que eu não era tão seguro de mim quanto pensava, assim, fui criando passagens dentro dos meus muros, fui fechando acordos com tudo que me intimidava. Hoje, ainda não entendo porque as pessoas esperam algo de mim, mas compreendo melhor o que não posso esperar da minha própria humanidade; caótica por vezes, mas convencida de que a fortaleza também mora na minha fragilidade.
Tantas vezes quis perguntar, exclamar, pausar uma locução, criar intervalos numa oração... tantas vezes!
Finalizar uma situação, pontuar uma explicação, respirar um texto antes de ser dito, grifá-lo antes de ser escrito... quis tantas vezes!
Mesmo assim, ainda querendo o que sempre quis, me percebo reticências... cheio delas; e na fala pausada pela força bruta de um ato qualquer, eu, sem interpretação, vago feito papel vazio que cala.
Quando perder o lugar de fala, dos outros o interesse, o apetite, com a voz embargada mesmo que por desinteresse, acredite na duração do que não se perde... um rastro bem deixado não pode ser apagado, pisadas firmes são mais que passos,
é a ação sem dor, sem constrangimento ou ressentimento.
A casa limpa e organizada, a comida pronta, as roupas lavadas e passadas, a dispensa abastecida, as rotinas diárias ticadas.
O asseio cumprido no banho, nas unhas e cabelos, a ida ao dentista concluída com sucesso, os boletos devidamente pagos, os ritos das manias cumpridos e os rituais que enxaguam a consciência de missão, executados.
Chega o fim...
Fica tudo no varal; a impermanência fala mais alto, a força cede seu lugar, as memórias passam a dizer sobre tudo o que se calou no tempo corrido das agendas pessoais, que não tinham nada de permanente.
As falas não ditas de uma vida gritam em meio à desordem da ausência, deixando claro que as doações importavam mais que os armários disciplinados com suas camisas impecavelmente dobradas, e que a fraqueza sempre foi parceira da fortaleza, e que o vento que soprou aquilo que mostramos em nossas portas, também soprará o que não foi permitido por desconhecimento de que vivemos suspensos, estendidos para sermos vistos passando; molhados e enxutos, alvos ou nem tanto, mas lavados de tempo num curto varal indisciplinado.
Quando a poesia passar espremida entre o tempo corrido de cada um, que ela encontre assento para se demorar, que ela traga sílabas tônicas que consigam enfatizar a existência de uma alma, que os acentos consigam lembrar as horas, que sua missão seja principalmente a de ocupar minutos que permaneçam num mundo que tem pressa.