30.6.23

Estado de estádio

A bola que teve seus dias de glória, que viveu campeonatos disputados, que foi desejada por vinte e dois competidores e que provocou a euforia do público, é a mesma bola dos dias sem gramado, murcha pelo tempo gasto, sem plateia e sem chuteiras... vítima de afastamentos e sem troféus; vive ainda a bola, sem placar, mas querendo dos títulos só o lugar de ser 'a bola'.

Casciano Lopes


29.6.23

Ponto a ao b

A rua não sabe quando se torna avenida numa sessão do plenário, nem se interessa na troca de sua placa de esquina; está ocupada demais, servindo de acesso aos que buscam chegada.

Casciano Lopes


Fios tecidos

Um dia toda tecedura de coragens
resultará na urdidura de um mundo gigante
feito de peito forte vestido,
suficiente como tapadura para a descrença humana.

Casciano Lopes


O milagre em cada gota

Eu ainda acredito na força que move as marés,
no mar quando se deita pra lua nele dormir
e nas embarcações que pedem licença pra tormenta atravessar.

Casciano Lopes


23.6.23

Morador e a massa

Vez ou outra, precisamos de consertos em lugares de difícil acesso, retoques em nossas alturas e muita ousadia pra cicatrizar nossas rachaduras.
Nessas escaladas por nossa estrutura, precisamos, além de sabotar o medo do vão livre, segurar a mão da corda que nos permite, além de prometer confiança ao nosso prédio e seu elevador (aquele que eleva do chão pra curar a dor), cumprir que os andares continuem seguros.

Casciano Lopes



Firmado e firmamento

Bem mais que o acaso, que um mero caso de encontro,
que um contrato bom para ambas as partes;
é o compromisso firmado nas galáxias
e realizado no abraço que as almas se dão,
quando os mundos se encontram fazendo união das partículas
que se juraram em algum dia, na partilha dos céus.

Casciano Lopes


22.6.23

Chama

Nossa casa, que precisa de uma pintura,
pede a tinta e por vezes só temos pincel.
É quando entendemos a casa das cores,
além de nós,
e então chamamos quem entende
de paredes desbotadas.

Casciano Lopes


21.6.23

Nas reservas de mim

Passeando dentro de mim, me perdi e me achei tantas vezes...
Me descobri desconhecido e me conheci tantas outras em que quis me conhecer, me apresentei.
Aceitei o retrato que via, e vendo quis tocar a moldura, quis ampliar a nitidez da imagem chegando perto e de tão perto, me misturei com a fotografia.
Hoje somos uma mistura de mundos, lugares que me fizeram cenário de contínua apresentação e todo dia a cena se repete e de novo, me aproximo da tela, pra ver melhor.

Casciano Lopes

20.6.23

Ideia de passarinho

Quando voamos em busca do alimento, desconhecemos as intempéries do voo e as condições do destino; sabemos apenas do objeto do desejo e é ele, que nos impulsiona pra fora do ninho.
No caminho, encontraremos muitos passarinhos, inúmeros, que como nós, estão a procura do que falta pra não voltar de bicos vazios.
É a rotina desde que se aprende a voar...
No processo das alturas, acontece de tudo: desde amizades com os viajantes e que num ponto do percurso precisam seguir viagem ou que simplesmente são deslocados por alguma corrente de ar, até fraturas das próprias asas que pedem pausas em montanhas para tratamento e os outros voadores partem, voam, precisam seguir.
Em cadeias de montanhas o clima costuma esfriar, até abaixo de zero, muitas vezes a neve cobre as asas, tornando-as pesadas pro serviço e aí o tratamento se prolonga. O gelo dói, mas também conserva e confiando nisso, é que o penoso aguarda a estação do aquecimento, pra que de novo voe pra casa.
O que se aprende fora do ninho, é que voltar pra casa está além de fazer o mesmo caminho, é entender que como passarinhos, também precisaram voar os outros, que não eram nossos... Eram livres.
Precisamos saber encontrar ou fazer outros ninhos, permitir a cura das asas pode ser tarefa longe do que chamaríamos de lar; mas é casa toda vez que encontrarmos um canto pra cantar o nosso, muitas vezes ao lado de quem nem soube do nosso caminho, mas que sabe sobre ser passarinho.

Casciano Lopes


Só palavras

São só palavras...
Alguns não dizem nada; estáticos, observadores e desafiadores.
Pasmados entre cores e flores, debocham calados do branco papel e sua pureza sem palavras.
A tinta que borra e esboça palavra no que não nasceu pra ser escrita, pode ser descrita sem uma única palavra... [uma parede de jardim que mereceu cor, por exemplo].
Já... o deitado na mesa, em estado de espera diz: são só palavras, enquanto clama por um pedacinho de cena que o defina em cor.

Casciano Lopes


19.6.23

Letras em dizer

A poesia é a palavra da boca muda,
é a quebra do silêncio quando o barulho do surdo pede fala.
A poesia, e só ela, enxerga sentido,
aguça os sentidos e sentindo-os todos,
acalma o tato, dispara o olfato ao ponto de dar gosto ao perfume
e quase que por intuição, transforma a audição em sala de concerto,
onde o mundo cala pra aplaudir o que outrora era ruído...
agora canção.

Casciano Lopes


Em face

Ele foi visto a iluminar toda a cidade, postado no alto de sua alegria contaminou os prédios que via de sorrisos que nas vidraças se acendiam.
Porque ele cria, se fez luz, noite era quase dia. O medo que era morador da sombra, fugiu porque era parente da covardia e se mostrar não poderia.
Assim, ficou estabelecido para aquele homem: que não há cidade fria, não há ruas ou becos que sofram de melancolia, que resistam o farol disparado pelo olhar de quem enxerga o riso antes da agonia.

Casciano Lopes


Pés de alar

Quando o que nos guia está além dos pés cansados,
qualquer andança fica possível,
porque a esperança cresce em asas
e a dor adormece durante a caminhada lenitiva,
quando os pés se recusam aprender a reclamar.

Casciano Lopes


18.6.23

De ossos secos, sem doer

Podemos cruzar o temporal, nadar a chuva fria que encharca os ossos e encontrar a outra margem da nuvem.
Podemos dobrar a mágoa e guardar pra ler no canto de uma sala estiada, mas também podemos permitir que a água a molhe na travessia, e que a faça dissolver e escorrer letras encharcadas; pra que na mesma sala, na outra margem, nos tornemos analfabetos de mágoas, sem carta pra ler.

Casciano Lopes


É possível desmemoriar?

Me basta a memória...
Pra etiquetar meus olhares todos, feito bagagem pra embarque.
Pra rotular a minha passagem provando que sim, a saudade tem definição.
Pra esticar o destino como um elástico percurso, só pra demorar o processo de ver e rever o caminho.
...
Na origem, quando estamos elaborando um trajeto, quando estamos esvaziados de memórias, temos dúvida:
Se queremos memórias pra nos bastar ou se queremos ficar só pra pausar, bastar a memória.

Casciano Lopes


Abundante planta e ação

Na terra que aramos dentro do peito,
as sementes não negociam a colheita,
simplesmente florescem.

Casciano Lopes


17.6.23

É permissão

A boniteza não está no viver sem tocar nas agressões da vida; isso é proibição.
A beleza está em tocar e ser tocado pelo grito sem perder o silêncio quebrado pelas ondas do mar ou pelo voo iluminado dos pirilampos da noite que sabe passar pra virar dia.

Casciano Lopes


Sem destino

Partiu feito trem de ferro da estação, a empolgação causou nuvem de fumaça como a de uma locomotiva.
Rebolou o movimento nos trilhos de correr como a máquina de engolir gente; numa vontade de vencer as estações como as da via sacra, insistiu no peso como o do ferro que carregava, mas não era peso de cruz e nem era Jesus... Era só um guri que recebeu a sentença quando nasceu e nem foi de Barrabás...
"Carregue e entregue pessoas nos seus destinos e quando sua locomotiva brecar, libere os trilhos pra que os jornais não reportem tua ineficiência".

Casciano Lopes


Pés de vento

E todo jardim que permitiu o vento,
foi visto em valsa de flor
e tocando de perfume os namorados
que passeavam sem pretensão de bailar,
mas que naquela tarde bailaram.

Casciano Lopes


15.6.23

Cardíaca sobrevivência

Ainda é possível caminhar na neve sem deixar esfriar a alma, sem perder a temperatura do coração e sem permitir o congelamento do sentir, dos sentidos.

O mundo pede casacos, toucas e luvas... Sente frio. A empatia que nos cabe é como um cachecol que distribui calor até os pés, que se souberem ir até o outro, não exigirão meias e botas.

Casciano Lopes


Entre mundos acordado

Só o sonho é capaz de nos colocar como vizinhos da lua.
O sonho divide a vista da janela sem pedir o sono em troca,
aliás, pede mesmo é que os olhos estejam bem abertos,
afim de sonhar.

Casciano Lopes


14.6.23

Arte meteorológica

Ainda posso pintar um dia quente,
o nublado é só uma tela disponível,
enquanto na vontade feita de cavalete
deito as tintas da coragem...

As mãos então viram céu azul
segurando os pincéis de criar
previsão de tempo bom.

Casciano Lopes


Peça... A ação

Somos plantados num cenário todo particular e entre sombras e luzes de palco, executamos o ato; às vezes atuando, dirigindo e não raras vezes somos o texto a ser dito, sem ensaio é verdade, mas elaborado no silêncio da duração, onde cala a plateia ou no grito entre aplausos quando finda o espetáculo.

Casciano Lopes


Encontro curioso

Há sempre algo à espreita
quando o olhar se compromete
com a procura.

Casciano Lopes


13.6.23

Do choro ao riso

Porque a vida não é só sobre lançar água ao mar...
Nascemos derrubando choro no rio, caminhando pro mar.
E quando crescemos nos erguemos, navegamos e levantamos palafitas sobre as corredeiras.
No dia maior, de maior idade, nos plantamos em ilhas, destinos de risos.
Pois o rio já virou mar, onde rir é mais que boia, é terra firme... rodeada de sal, mas cheia de sol.

Casciano Lopes


Soluços transbordados são superados

De maneira que findei aprendendo,
nem sempre entendendo, mas findei.
Findei com a mágoa pouca,
que achei que era muita
e compreendendo assim o rio que corre pro mar;
como ele corri sem barreira de contenção
e vi que dor nenhuma merece um rio que finda
e vira mar pra eu findar.

Casciano Lopes


11.6.23

Ares da voz

Que não me cale o barulho da chuva, a noite quieta e nem a voz molhada da luz da esquina.
Que o meu silêncio, tantas vezes saiba se fazer ouvir, tantas quanto a palavra precise de banco pra sentar e conversar comigo, pra que assim, algo dentro de mim, se mantenha aquecido porque soube dizer antes de se calar.

Casciano Lopes


10.6.23

Pare e pense

Há tanto pendurado nos meus varais...
Tanto descansado em meus aposentos
ou cansado em meu olhar
de olhar a rede de minha varanda;
que eu aqui do meu alpendre,
da minha janela de esticar a coragem,
penso: há tanto!

Casciano Lopes


Nem sempre calmo, nem sempre agitado

Se tantas vezes o corpo parece barco no mar,
eu descubro a carta de navegação no porão
e não nas águas.

Casciano Lopes


Fiel

Talvez eu precise dos dois pratos da balança;
pra me encontrar inteiro,
me pesar sem ser dividido
e me equilibrar entre quem sou
e o meu sorriso pesado pelo dono da venda.

Casciano Lopes


7.6.23

Coisa de ninar

O amor vem no colo,
a gente carrega no sorriso,
dobra e guarda no coração
pra ele saber tocar a música
que faz do corpo uma festa.

Casciano Lopes


6.6.23

Lua livre

Detenta de mim,
calou nas minhas celas o seu brilho,
como se pudesse.
Seu halo abriu os cadeados
e deixou sentado o carcereiro
que duvidava da liberdade.

Casciano Lopes


5.6.23

Era vida

Vi tudo seguindo um fluxo
E me senti um rio
Ao mesmo tempo
Em que era as margens
Os ribeirinhos
E a embarcação que deslizava
Junto com tronco, galhos
E folhas embaladas pela água.

Casciano Lopes

Ajuste de foco

A sombra e a luz trabalham em parceria,
revelando um outro acontecimento:
a permissão.

Casciano Lopes

2.6.23

Altura

Pensando a vida a gente se descobre eterno no direito de crescer pra tocar os céus, só pra bater na porta pedindo passagem.

Casciano Lopes


Livraria

Viemos pra escrever um livro, a cada dia um capítulo.
Uma grande história, inúmeras personagens em cenários múltiplos.
Nascemos com a capa, escrevendo o prefácio e durante o processo da escrita permitimos leitores.
Uns escritores escrevem muito e outros nem tanto, mas todos escrevem livros lidos.
Mas... acaba.
O livro finda com aquela sensação de uma história interrompida e os leitores é que poderão, ao seu tempo, fechar o volume e arquivar cada qual na sua estante de guardar contos, a obra que leu, interpretada ao seu modo e com uma leitura bem particular.

Casciano Lopes


1.6.23

Cardíaco gosto

Quando a gente diz que o coração dói de um jeito que não sabe dizer, a gente quer dizer que ele salivou seu compasso na boca e embaralhou as palavras.

Casciano Lopes


Quase um mapa

Nos meus arredores costumo plantar flores,
aquelas pequenininhas de beira de estrada,
que quase nascem sozinhas e que são independentes...
Gosto de usar umas pedras roliças
e outras mais angulares ao longo de onde preciso passar;
assim, não me perco,
e tenho uma referência quando preciso me achar.

Casciano Lopes


Demonstração

Tanto na exposição desmedida
quanto na discrição contida
há despropósito,
se a intenção for a de se encobrir.

Casciano Lopes