28.6.22

Ato de avental

Preparando as receitas
é que a cozinheira descobre os ingredientes,
é construção a feitura do sabor,
não se conhece as papilas
até que se exija delas a degustação;
a prova de saber,
vem do exercício de fazer,
e como na vida,
a nota de aprovação é bem salivada.

Casciamo Lopes



Doce que busca mar salgado

Admirável é o rio
que molha o caminho que percorre,
sabendo que nunca mais passará por ele.

Casciano Lopes

De vagar

As ruas fecharam homens dentro de si quando os relógios marcaram o fim. Até quem já havia passado mais cedo, se manteve caminhando nas calçadas e as portas fechadas dos comércios, contam que ainda sentem o perfume e o som das vozes que de manhãs outroras ouviram.
As esquinas que são guardiãs, guardam e confirmam as presenças, afinal, foram nelas que segredos foram cochichados antes dos apertos de mãos de adeus.
É o que não dorme por causa do tiquetaquear dos ponteiros... A história que sabe passar passeando e que as horas vão sempre contar.

Casciano Lopes



Permuta do bem

Ao se aproximar de um sorriso,
tenha em mãos motivos e neles,
mantenha um riso largo
pra que motive
e não cesse a troca.

Casciano Lopes



Casos de melaço

O rapaz que tomava garapa,
desgostou-se
quando soube da cana quebrada.

Casciano Lopes

Muda em sala

Em cima da mesa
havia uma caneta branca e um papel azul,
também tinha um cinzeiro de vidro
resmungando com os óculos vermelhos.

Ele achou que a cadeira
estava atrapalhada por conta das cores
e sentou sem fazer poesia.

Casciano Lopes



24.6.22

Pertence e não pertece. Contido

Não me empurre; tenho o equilíbrio comprometido.
Quando eu estiver lentamente cruzando uma calçada, contorne...
Talvez meus pensamentos estejam apenas elaborando passos.
A pressa não é mais minha, como não são meus os seus adjetivos e julgamentos. As opiniões dos que pensam me saber, há muito não importam e o que hoje faz de mim um ensaio centrado, é justamente a ferramenta que o desequilíbrio me deu...
Não cabendo em mim o que não me pertence, caberá um andante menos pesado na hora de pensar o passo.

Casciano Lopes



Na medida de sentir

Fiz um pacto com a inteireza...
Quando vem a tristeza,
que seja inteira pra passar logo.
Quando vem a alegria,
que inteira seja de montar,
pra que eu brinque de quebra-cabeça demorado.
E assim vou cabendo todo,
nos lugares que me cabem inteiro.

Casciano Lopes

23.6.22

Em dois passos; um do lado de lá e outro cá

Desconheço tantos que fui
e que dão forma ao ilustre
desconhecido que sou.
É então,
que busco me apresentar todos os dias,
na ânsia de me encontrar.

Casciano Lopes

Cosmos em endereço de corpo

Vivem em mim os universos.
Versos que faço das lâminas
que também me habitam,
vivem.
Poemas de mulheres
conhecidas de minhas vidas,
me tornam forte com suas formas
de passear suas poesias que vivem.
A lua de meu ainda desconhecido homem,
clareia o meu breu
pra que não se ilumine rápido demais,
quando chegar o sol
de tudo que mora em mim.
E eu,
convivo com elas e eles,
é minha forma de conhecer.

Casciano Lopes

22.6.22

Feliz diagnosticado

Entendi.
Está tudo bem,
apesar dos laudos,
porque a vida os têm;
estou no lucro dos dias,
o tempo de fato não é de ninguém,
cada dia é um bônus
e o ônus faz parte de qualquer alegria.
A alegria é coisa de momento,
dá e passa.
Felicidade é estado,
independentemente das circunstâncias;
ela não passa nunca.

Casciano Lopes

Ciência ainda não diplomada

Quando um cardiologista fala:
seu coração tá fraco;
ele não fala de sentimentos.

Casciano Lopes 

Facho aquecido

O que aquece é a luz;
Não só a do sol,
mas a que vive dependurada
no candelabro do tempo particular
de cada um.

Casciano Lopes

Padrão de temporalidades

Hoje entendo e só hoje...
A minha condição é só minha;
não adianta falar sobre ela.
O outro estará sem audição,
ocupado muitas vezes por sua locução.
E está tudo bem,
afinal,
a condição do outro também é exclusiva
e embora vá procurar em mim,
uma situação pra justificar
a relação esgarçada das mãos
que não se tocam por faltas...
Chamará a isso de ausência
e não de condição.
O silêncio ainda precisa me ensinar,
calar não é mais opção;
é uma opinião sensata,
só por hoje.

Casciano Lopes

20.6.22

Mundão por fim

Dizem que no fim do mundo
tem um bocado de coisa que não cabe lá.
Deve ser por ser o fim;
no fim da feira
não cabe nem a fruta sem apalpamento.
No fim do lenço
quase escapa e cai uma lágrima.
No fim do velho
quase desaparece o menino.
É mesmo...
No fim do mundo a gente chega apalpado,
quase sem menino
e com um choro no canto do olho pra caber.

Casciano Lopes 

Homem almado

Um pelotão condecorado
é feito de almas em riste.
Apresentar...
Preparar...
Apontar...
Fogo.
Arde o combustível
na combustão que modifica
o modo de enfileirar a guerra da vida;
a do amor.

Casciano Lopes 

19.6.22

A poda

Será que a moenda faz parte
do imaginário da cana
quando é plantada?
Será que pensa
apenas em seu dulçor
no seu nascimento?
Como imagina a cana atingir
o estado de garapa
quando crescida?
Assim o canavial atravessa
a distância do inevitável
pois é doce.

Casciano Lopes



Olharado

Quem tem mania de trazer o horizonte
ancorado na ponta da vara,
traz o sol içado na vista que nunca se põe,
deixando a nuvem clara,
por mais chuva que chova,
vem a brisa que se avista de perto
e sopra o alagado pra longe
num lugar estiado.

Casciano Lopes



Pacto versado

Poesia é coisa sem tamanho.
Não tem que ser pequena
a forma de dizer,
como não precisa ser grande
a palavra.
Tem que ser enorme
o motivo,
aí nasce poema
e não morre nunca num papel dito.

Casciano Lopes




Como vai você?

Vou levando...
Nem menos
pra não achar suficiente.
Nem mais
pra não sobrar na minha tarde
e faltar pra aldeia.
Vou,
só o suficiente pra manter as mãos
em estado de uso.

Casciano Lopes

Anzol de carne

Na fundura do poço
há que se pescar
um coração capaz
de ser balde,
sarilho
e corda;
pra chamar a água
que sacia a sede
do deserto do chão.

Casciano Lopes

Essa gente

Ainda é pequeno
porque cabe nas mãos
o desejo de gente cheia de mundo.
Estou cuidando pra que aumente
e só caiba no mundo o que tenho,
e o que falta quando me escapa
das mãos de gente.

Casciano Lopes

Tato

Tem que olhar o mundo
sem os olhos.

Casciano Lopes

Cardiograma

Bate fora do peito
a vontade de entender essa capacidade
de compassar os batimentos internos,
pra que não falte a emoção
durante a avaliação da razão.
A aprovação dependerá do fluxo
e seu motivo de cuidado.

Casciano Lopes



Astronauta de ver

O que dista o homem
da lua
não é a falta do foguete
pra levar,
é o olhar humamo
fora da órbita.

Casciano Lopes

16.6.22

Em face das fases

Se a sombra fugir com as folhas,
que fiquem as raízes
e que finque entre nossos galhos,
a luz que atravessa a certeza
de que somos capazes de primavera,
feito árvore que não duvida.

Casciano Lopes

Uma forma, instalação

A vida também é tramada e obedece padrões em suas tramas.
São encontros de pontas, são finais de linhas, são desenhos obedecidos geometricamente; perfeitos ou nem tanto.
Bonitos sim, sempre!
Há sempre algo de lindeza em fios que se juntam para criar uma existência.
Vale pra vida também. Quiçá exista dentro de nossa artesã construção, luz que ilumine a obra e que sejamos elevados a farol para os que navegam mar alto.
Penso nisso, quando acordo e miro a mesa de cabeceira... Como em hora de marujo ao mar, hora de despertar e se iluminar para iluminar.

Casciano Lopes



15.6.22

Os segundos de pepitas

O que me provoca esperança,
não são as relíquias que guardo;
essas me despertam força,
são os garimpos no meu baú de miudezas,
que de cotidianas atiçam meu relicário,
transformando em antiquário
minhas maneiras de acreditar.

Casciano Lopes

Contador de ciência

Não quero falar da falta,
da escassez ou dos débitos na planilha dos dias.
Nem quero planilhar o que não cabe
no mapa quadriculado dos números inteiros.
O que é inteiro não existe pra caber...
Exala, foge, escapa, transcende,
supera o quadradinho de cabimento.
Isso acontece com o metafísico,
com o sublime, com o extracorpóreo,
com o supra-físico que avistamos sem toque,
como quem vive dentro em sopro de fases,
numa fração que deve sobrar
a quem interessa gerar créditos.

Casciano Lopes



Caixa de correio

Clamam os selos...
Por envelopes pardos, brancos ou zebrados.
Clamam em prece de carteiros com suas bolsas murchas.
Esperam com mãos juntas ao peito, por linhas tortas, não importa, preenchidas de caligrafia alfabetizada ou ditada por bocas de tempo bom.
Pedem os selos que não finde o zelo pela distância; que o esmero de buscar a palavra na escrita, mantenha a fome por notícias do distante e que continue empregando não só o envelope e a campainha, mas também a caneta de dizer presença... De falar de gente.

Casciano Lopes

A noite precisa

Viva ao ponto de tornar-se necessário.
Preciso aos que estão em tua volta,
aos da rua debaixo,
aos da vila alta
e aos sapateiros da cidade baixa.
Não é ser importante,
é fundamental entender
a essencialidade de ser.
Onde se pede a sobra de onde se esbanja,
seja a equação que justifica.
Seja a luz do teu poste da rua
e se faltar lâmpada,
pendure a lua.

Casciano Lopes

Um viajante de peso

Veio tudo na mala;
teve que caber a porteira,
a lua que beijava pasto,
o cafezal e o cercado da criação,
o sol que era vizinho do açude...
Até a ponte
que morava com uma araucária de papel passado,
enfiei na pequena de lona.
Quem não coube,
coloquei nos bolsos da calça curta e desde então,
quando preciso lavar,
não uso alvejante,
faço uma água com sabão de pedra
e depois quaro com anil;
que é pro azul chacoalhar as minhas cercas.

Casciano Lopes

Andanças divididas

Não...
Não ando só.
Carrego meu nascimento cheio de mãe,
minha criança cheia de roça
e meus ouvidos cheios de casos
com pitadas de cachimbos dos mais velhos.
Por onde passei,
deixei um pouco da prosa que contei,
mas trago cidades inteiras
e sua gente morando no compartimento meu.
Arrasto pelas mãos uma turma de circo...
Sempre optei pelo riso
e até hoje prefiro montar as lonas
em cada campo aberto que chego.
Mora tudo nos meus cômodos
e andam comigo pelas mãos,
da plateia aos cartazes do espetáculo.
É,
não vivo só.

Casciano Lopes



14.6.22

Tenho mas não tenho

Ainda é noite nas minhas madrugadas...
É preciso calar os relógios que acham que podem avançar deliberadamente por cima de meus ponteiros, como se fossem donos das horas.
Penso que no máximo são administradores do que não lhes pertencem: a minha noite.
Minhas horas, que eles dizem que avançam, voltam pra buscar nas tardes os que lá ficaram e eles gritam noite alta, não esperam e despencam em manhãs alarmando minhas ausências.
Os de pulso, ainda quebro... Para não assustarem as minhas fraturas, as que sinto em qualquer hora.

Casciano Lopes

13.6.22

Identificação

As mãos se juntam numa prece,
se estendem num gesto pedinte,
amortecem uma queda,
abraçam e apertam,
afagam e aplacam o que dói,
enxugam pranto e até provocam choro...
Bom mesmo é quando elas se entrelaçam,
assinam compromisso,
desenham estradas no caminho da gente
onde outrora haviam becos...
Bom é quando sabem dizer sem palavras,
só no toque da calma,
que as digitais se fundiram
e que o reconhecimento
se tornou uno em duas mãos,
que distintas foram ontem,
e que hoje são exclusivas...
As mãos que se encontraram.

Casciano Lopes



Num cartório perto de você

Ainda há tempo de lavrar num papel de pão
um compromisso sério com a vida,
o de mirar com coragem
toda a covardia fraca do desamor.

Casciano Lopes



12.6.22

De caso

O que vejo em mim
é o mundo que sonho
e o que vejo no mundo
é minha cara metade desejada.

Casciano Lopes



Perguntam o segredo...

É todo dia namorar,
fazer de qualquer olhada
um primeiro encontro.
Manter o perfume da descoberta,
fazer do café da manhã
uma padaria de possibilidades
e ainda voltar pra casa se sentindo valente.
Como um Valentino,
... um mascote de juras.
Isso, todo dia!

Casciano Lopes

Nossos junhos no varal - 12.06.2022

Sabemos das estações meu amor; conhecemos o inverno com suas rajadas e estocamos colo nos verões abrasadores. Entendemos o outono que poda os galhos e reservamos buquês nas primaveras tantas que coloriram nossa cama e mesa.
Ao longo do relógio de marcar o tempo das viradas, descobrimos como buscar nosso sol... Bastava colocar nossos corações juntinhos no varal e ele vinha... Todo quentinho, iluminar nossa maneira de acreditar que tudo passa ao mesmo tempo em que tudo é pra sempre.
Por isso ficamos eternos, ensolarados, assim... Tostadinhos de amor no ponto da eternidade. 26 junhos se passaram desse nosso encontro dentre tantos que foram antes, e tantos mais que virão depois. Descobrimos que o que conta mesmo, é a incidência de luz em cada canto nosso de viver; seja num quintal de quarar nossos corpos, seja num quarto de agasalhar nosso frio... Mas que seja sempre abrigo nosso amor, o sol particular que tem aquecido nossa chama gêmea.
Te amo eterno namorado.

Casciano Lopes

11.6.22

Beleza eterna

O que um dia foi bonito,
jamais perderá a boniteza.
Ficará bonito dentro de mim.

Casciano Lopes

Rendeira minha

A renda que você deixou,
o orvalho molhou.
As coisas que você ensinou,
em arte frutificou.
Ficou em mim e em toda a cidade,
rendada a vida que você bordou.

Casciano Lopes

Modo ativado

Nascer no modo florir,
diz sobre posturas
aromatizadas ao longo da roda.
Como no tarô temos a roda da fortuna;
na vida temos a roda gigante.
É preciso brincar de posições
com a mesma essência capaz de flor,
pois é mais sobre o que exalamos
do que em que posição estamos.
Estando sobre ou sob canteiros,
não se deve apagar o perfume,
aliás,
ele é que nos lembra
que a vocação do que somos
é se manter aceso,
em flor.

Casciano Lopes

Ainda é sobre cuidar

Saber da importância dos campos não é suficiente, é preciso meter as mãos na terra, é necessário lançar as sementes, molhar o chão, remover as pragas.
Se preciso for, deitar-se na grama e ser o adubo a partir da força que temos escondida em nosso celeiro de acreditar.
Só assim, cumpriremos o propósito de unidade, entre nós e o grande ventre de crescer belezas. Unicidade.
É ao que se destina a vida; vale para todas as nossas casas e relações, do mundo que avistamos da janela ao nosso interior quando fechamos a porta de dormir.

Casciano Lopes

Molhe o sertão

Quando entender teu corpo como uma festa,
abra mais que depressa
as comportas dos rios que correm em ti,
liberte as correntezas que vivem em represa
e dance todos os ritmos que tua história sempre ensaiou.
Os contos...
As tuas águas saberão cantar
pra que a tua luz possa bailar.

Casciano Lopes

10.6.22

Verso-multi

Tudo acaba...
O açúcar do pote
O ano letivo
A pilha da lanterna
A leitura da ode
A dor diante do lenitivo
O barulho e a baderna.
Tudo.
Só não finda
o que vive em estado de mundo,
alinhando o sorriso
como se arrumasse planetas
e olhando o silêncio
como se riscasse descobertas.

Casciano Lopes

Os fins justificam... Mesmo que eu não conheça o começo

Ainda que eu desconheça a origem do que vive em mim e de minhas lidas mais antigas, quero poder escolher ser viga que sustenta a missão e que, vire sólida a construção, que seja firme a instalação e que hospede minha própria admiração quando de novo eu precisar passar por ela sem conhecer origens.

Casciano Lopes

Sem alarde

Vou encontrar um sentido pra calçada
que se deita perto de uma cerejeira,
só pra que não se machuque
a pétala que cai por ser flor.
E se depois eu não achar,
me deito pra fazer sentido em mim
o perfume da flor calçada.

Casciano Lopes

Aumente o volume

O que hoje me mantém na frequência, morou na fazenda.
Tinha o hábito de viver dependurado em parede, feito rádio de pilha.
Costumava morar em pote de barro, feito água fresca.
Descansava em assoalhos encerados e se abrigava nos telhados que pareciam costurados por teias de picumã.
Foi o encantamento que detalhou minha criança, permeou as frestas que ventavam os casos em torno do fogão à lenha e mantinham o frio do banheiro das pererecas que aterrorizavam a nudez dos banhos de canequinha.
Encantamento é a palavra que me sintoniza, que me tira das ondas curtas pra frequência modulada num passe de ondas médias.
Devo a essa estação minhas paredes encantadas.

Casciano Lopes

Operação vivente

Todo dia
eu quero agradecer
e assim vou amadurecer...
Sabendo que pra reclamar
basta querer,
já pra agradecer
basta viver.
Então vivo.

Casciano Lopes 

Onde tudo é luz

Acho de um encantamento
o que clareia a estrada da gente!
Isso vale pro sol,
pro aconchego de um abraço
e pra nossa face que fica iluminada
na chama dos que se iluminaram.

Casciano Lopes

7.6.22

Pensando... Pensando

Estava caminhando desprevenidamente,
como o faz um bebê;
sem pretensão de alcançar a bolsa de valores...
Embora fosse de um valor inestimável
o objeto avistado.
Não sei que força de atração existia nesse desejo,
sei que até hoje essa força me move.
E foi assim,
caminhando sempre,
que fui salpicado por calêndulas
numa das andanças e desde então,
fiquei fácil de vingar.

Casciano Lopes



Longo passeio

Viajei longe, arrisquei mesmo! Usei meus recursos, gastei meus bônus e até parcelei alguns souvenirs na viagem.
Paguei à vista o encontro que buscava, não só dos lugares paradisíacos, mas de quem estava nesses lugares. E que vista!
Embarquei e fui.
Viagem longa!
Ganhei créditos pra voltar lá, fui bem recebido, me senti acolhido.
Onde? Ah, esqueci de dizer: viajei pra dentro de mim...
Tive até que superar o medo de mergulho, mergulhei e quase não quis voltar. Aliás, nem sei se voltei.

Casciano Lopes

Jardinagem

Quando o jardim escorregar no jardineiro,
talvez seja a hora
dos canteiros calçarem perfume de flor;
o aroma não impede,
mas amortece a queda em si,
numa escala de rosas com tom floral.

Casciano Lopes

Nada excedido

O que mantém os ponteiros em sincronia,
seja do relógio ou da balança;
não é o quão dinâmico um corpo pode ser,
é quão passivamente a alma pode correr
por ser leve, em favor do vento,
ou a favor dele, ativamente leve.

Casciano Lopes

Esse ciclo que me constrói

Com os dias,
o que mais fica em mim ironicamente,
são os que não ficaram por força maior,
inclusive memoráveis dias.
Mas há as novas manhãs
que trazem possibilidades
de construção de novas memórias...
Então,
começo tudo de novo;
pra que no futuro seja de novo
memorável esse hoje.

Casciano Lopes



5.6.22

Menino feito de Neruda

Querido diário, sei que os dias vão tingir suas páginas de um amarelo que só os velhos conhecem, aliás, foram eles que me contaram sobre a ação dessa cor.
Também sei, sobre aprender novas letras que me farão esquecer das cantigas que aprendi com Mariazinha no quintal de casa, onde brincam os pintinhos amarelinhos; inclusive eles crescem e perdem essa cor... Acho que o amarelo tem mesmo algo de perverso...
Diário meu, quero pedir que se possível, mantenha a cor original das linhas em que falo da ponte no fim da rua de casa, pois ela me permite brincar no mundo do outro lado e quando canso, posso voltar e dormir em casa ouvindo a cantoria de minha mãe na cozinha.
Não sei se posso, mas acho que devo proibir o amarelo nessa linha. Assim, quando eu crescer e chover cores pesadas sobre o tempo de escrever, quero voltar pela ponte e ler claramente as letras que escrevi nessas linhas brancas.
Assim, de calças curtas e meias, numa mesa pequena, firmo o compromisso de voltar aqui toda vez que quiser crescer demais... E não estou brincando, viu? Você tem linhas e eu tenho o lápis...
Combinado e assinado; o menino colorido, sem amarelo.

Casciano Lopes




4.6.22

Conversa de ponteiros

Que horas são?

Tem a hora do sorriso,
a minha preferida.
A hora do almoço,
boa pra quem conquistou algo além do prato.
A hora da Ave Maria,
ideal pra quem já careceu de oratório.
A hora de zerar o cronômetro,
justíssima com quem quitou seus débitos.
Ei... E tem aquela de meter os pés no chão;
recomendo fazer isso com delicadeza
pra que o tiro de largada
não alargue demais tua capacidade de ouvir.
E aí seu moço, sou o tempo e o que vai querer?
Não tenho todo o tempo do mundo!

Casciano Lopes

Palavras em linhas de correr

Escrevo porque a vida é aço duro que corre em nossas veias, porque se cruzam em nossas artérias em todo o tempo o querer e o poder, porque brincam de destino nos vasos a escolha e a consequência, feito trilhos que toda hora causam desvios; optados e alheios ao nosso controle.
Escrevo porque sou controlador de tráfego, mas também sou o trem que corre ferrovia, sou o passageiro apertado do horário de pico, sou a bolsa de mão do menino sem pressa, sou a vista da janela dos que puderam sentar...
Ah! Mas gosto mesmo, é de quando sou estação, de quando sou o relógio dela; quando encontro as chegadas, sabendo das partidas.
Estação é coisa de volta pra casa, aí escrevo.

Casciano Lopes

3.6.22

Carta de localização

Não dá tempo
de morar em todos os lugares,
de salgar todas as praias,
de abraçar o canto de todas as aves,
de beijar todos os passageiros...
Não dá tempo
de emprestar colo pra todas as ferrovias,
embarcações e seus canais,
não dá tempo pras rodovias
costurarem em mim o mapa dos continentes.
Não dá pros aviões desmentirem ou construirem
rotas sobre todos os meus oceanos
e minhas próprias árvores da orla,
sombrearão um futuro onde não haverá meu tempo.
E é por essas razões todas,
que vivo tudo em mim:
moro, navego, trafego...
'Me oceano' inteiro pra que então ao final,
eu tenha morado todo em todos os lugares
e abraçado toda gente.

Casciano Lopes

6/12

Junhos...
Trazem no bolso
a beleza guardada,
brincam de esconder
nos agasalhos os abraços,
deixam do lado de dentro
as aquecidas possibilidades
e misturam nosso olhar
de adivinhação do que está além.
A metade de nosso inteiro,
o inteiro interior das metades.
Nosso 'fora' e o 'dentro' do outro
Nosso 'dentro' e o 'fora' do outro
Capazes de atravessarmos somos...
O xadrez e o listrado da junina
barraca de inverno.

Casciano Lopes




1.6.22

Amar pois há mar

Da água do mar guardo a primeira vez, a sensação de que ainda não tinha vivido pra contar a vida, guardo.
Foi como um parto, parecia que nascia de mim aquele mundo de ondas.
Eu pari naquele dia com todos os ais e sais um ser líquido e que até hoje, vive em mim como acontece com os filhos que crescem e continuam cabendo no ventre de guardar a gente.
Por isso que quando me pego querendo envelhecer, corro pra lá, busco nas areias de avistar meu filho, a dor amada que me traduz num jovem parturiente e me dou à luz em mar.

Casciano Lopes