31.3.22

Só o medo deve naufragar

Quando for dispensar teus sonhos,
o faça como faz uma criança
de cócoras na beira do lago,
dobre-os com jeitinho numa folha de papel
e com delicadeza coloque nas águas
pra navegar o barquinho...
Se afundar construa outro e repita o gesto,
se não tombar,
comemore e corra as encostas do lago
pra acompanhar a embarcação,
é sonho que merece aplauso.

Casciano Lopes



Sete dias com um no meio

O que será das quintas-feiras?
O que haverá com elas?
Não, definitivamente não é um dia comum.
Não amanhece como as demais feiras,
parece ter vontade própria.
E quando nos damos conta,
pronto! Sozinha abriu a janela.
Quase sempre,
ainda estamos nos ritos do acordar
e ela já grita como dona da casa:
o café tá pronto!
Acho que é mania de jornaleira,
gritando a sexta enquanto anuncia
no caderno de esportes, que a semana,
está em final de segundo tempo.
É, se parece com uma partida,
com uma necessidade de marcar um gol
no dia em que eleva o homem
à quinta potência de viver um dia de semana.

Casciano Lopes

30.3.22

Direção

Eu vi uma dor no chão
E desviei a passada
Eu vi uma pessoa deitada
E desviei da calçada

Tanto um quanto o outro
Sofreu os danos, planos e seus anos
Precisamos parar de desviar
Toda a mão pede uma boa olhada

Começa com as mãos, depois dos olhos, a ação.

Casciano Lopes

28.3.22

Saiba anoitecer

Se em um dia a mesa amanhece
de pernas pro ar e pelada,
em outro, entardece posta
com delícias numa toalha xadrez.
A vida é assim,
uma dança das cadeiras em volta dessa mesa.

Casciano Lopes

27.3.22

Multi

Quando faltar ponte
É preciso nadar o rio
Se faltar veículo
É preciso caminhar mesmo que em desvio
E se faltar braços pras braçadas
Ou pés pra transportar
É preciso ser a água
É preciso ser o caminho
Em assobio ou arrepio
É preciso.

Casciano Lopes

Galho de pendurar olhar

Precisamos ter nossa árvore de passarinhos...
Aqui tem...
Nela tem Joãozinho, que dentre seus amigos,
escolheu olhar o mundo de cabeça pra baixo,
e está tudo bem ter outros pontos de vista.
Se não causa vertigem, que mal tem?

Casciano Lopes

Passarinho piloto

Há que se manter vizinho do céu
o homem que pretender caminhar a terra;
de modo que itinerante,
ele se sinta parte dele, caso contrário,
não conseguirá levantar voo
quando os pés se recusarem a tocar o solo.

Casciano Lopes

Nada pacato

Tem hora que é teimosia mesmo,
vontade purinha de contrariar a negativa...
Sair da subordinação da frase
pra uma oração positiva e impositiva.

Casciano Lopes

Catálogo

Não cabem nas mãos os lugares todos,
não cabe nos bolsos a saudade grande,
não cabem nos braços poucos os abraços largos,
não cabe nos pés ensaboados
tanta água vertida das fendas do mundo,
não cabem os retratos graúdos
no miúdo jeito de olhar o tempo...
Mas cabe na alma que é vasta
e que não se perde, quando sabe guardar.

Casciano Lopes

Pra perto e pra longe trazer e levar

Quando venta aqui em cima,
canta dentro de casa uma verdade só...
Não pode ficar no mesmo lugar,
o que só existe pra se mudar.

Casciano Lopes

Apenas guardar

E nos passeios poucos
recolho importâncias...
Trago pra casa.
O encantamento precisa
permear minhas paredes,
assim não esqueço
de por onde andei.

Casciano Lopes

25.3.22

Parada em tempo pouco

Há um lugar de parada,
onde largar mão do arado
um instante é fundamental.
Nesse espaço de recuo
como o da bateria de uma escola,
a mãe Terra nos ara,
revolve nosso chão
e fertiliza nossos instrumentos
de cruzar a avenida.

Casciano Lopes

Sorrir também é florir

Que nunca nos falte alegria,
não por ter os dias em mar de rosas,
mas por ter mar e não se afogar,
por poder admirar o lado navegável da vida,
assim como para os elementos e o ciclo da rosa
saber olhar e entender de fazer brotar.

Casciano Lopes 

Uma ponta de tempo

Eu vi o tempo de costas.
Tinha um caminho feito de pedras e cores,
tinha uma luz que sabia esverdear
quem por ele passava,
enquanto a moldura que o protegia,
servia pra fazer passar devagar.

Casciano Lopes



É meio dia

Não posso passar impune
pelos campos de plantio,
assim como a cera não fica imune
diante do sol mesmo que tardio.
Sou plantado na contemplação
e exposto ao ato de passar feito desilusão.

Casciano Lopes

O amor na estação

O amor foi visto entre árvores
brotando em folhas
e brincando de verde

Foi visto num chão de outono
Escalando troncos de inverno
Se dependurando em primavera

Soprando um aroma perfumado
Abanando uma paisagem exuberante
Causando nos passantes... Verão.

Os que não viram, ainda verão
Que ele é coisa simples
Que se posta nos olhos e cresce no coração.

Casciano Lopes

22.3.22

Entre lados

Ainda que custe tudo
que sobrou da ponte,
vale o esforço de jogar
o passo em direção
ao lado manso do rio.

Casciano Lopes

E ainda nada saber

Não estar no controle de coisa alguma
é sobre saber o vulnerável estado humano
submisso às estações.

Casciano Lopes

19.3.22

Dona ilustre

Antes de nos sentarmos na conversa,
antes mesmo de puxarmos as cadeiras da vida,
antes da ceia e do partir do pão;
que se sente à mesa a gratidão.

Casciano Lopes

17.3.22

Tem sol o tempo todo

Meia-noite carrega na expressão um tempo terminado, parece que tudo que não foi feito fica prorrogado pra quando não for noite, como se minutos antes também nao fosse noite.
Quando é meia-noite decretamos tempo findo e muitas vezes, nos sentimos madrugada, é como se a carne desligasse as capacidades.
É como na vida...
E precisamos fazer das altas horas um bom lugar de estar, acomodar-se mesmo que em travesseiros de forma calma, pra não afugentar a vida e nem escapar dela.

Casciano Lopes

Lacrimejar

Por vezes os olhos são vítimas de ciscos.
Eles viajam por céus,
elevam-se da terra numa ventania,
surgem das águas quando se agitam e,
como se obedecessem um endereço,
atingem a vidraça de ver.

Penso que o par de olhar,
serve exatamente para rebater ciscos,
pra que não desçam e se alojem no coração,
causando fissuras,
de repente,
sangraria demais e causaria cegueira na janela de ver.

Casciano Lopes


15.3.22

Ensaio do que se foi

Da minha poltrona de quarto, em meia-luz e em meio e por meio dela, avisto uma porta que me transporta.
Passo por ela com o olhar de pernas apressadas e como num passe de mágica, saio do "estar" para o "estive" em milésimos de segundos.
Revisito minhas horas de caminhada e tenho a impressão de que faço isso agora com mais encantamento que das outras vezes, parece-me que demoro o olhar, que abraço com mais sede minhas pessoas todas e que nos bancos em que estive, agora deixo escrito recadinhos: falas do que não disse.
Ah se não fossem as portas! Com esse dom de nos fazer passar como que por uma dobra de tempo. O que haveria de nós no haver de um quarto escuro?

Casciano Lopes

14.3.22

Pele em fuga

Quando o sol me bate
Eu apanho feito sombra
Corro até a noite pra contar
E a lua reflete em mim
Que pela manhã ele volta.

Casciano Lopes

Hoje, um lugar

É como na construção de um prédio:
elabora-se a planta
e vem a lida com o cimento e vergalhões.
Coisa de tempo.
O que não se deve
é gastar a venda das unidades
durante o processo.
Colocar o amanhã no lugar dele
não dispensa projeto, dispensa a pressa,
não se gaste, não gaste o tempo.

Casciano Lopes

Um corpo de casa

Para além de uma dor,
há uma desocupação certa do imóvel...
Um dia.
Devo devolvê-lo em bom estado.

Casciano Lopes

Face a face

É necessário retocar o riso,
lustrar a vista
e desembaçar nossas metades no espelho.
É preciso cuidar do nosso estojo de cores,
pra que o medo e a coragem
se harmonizem na tela
e nos compreenda em um inteiro,
onde vença nosso ousado lado.

Casciano Lopes

13.3.22

Acorda! a corda que badala e não cala - 1701

É preciso dizer...
Houve um tempo de glória.
Houve dias de fartura e a abastança não era de dinheiro, mas tinha muitos dias num ano, nos meses, nas semanas e os próprios dias pareciam grandes.
Houve festas, encontros, cerimônias e até lugares que se tornaram pessoas e pessoas que eram canto de regozijo.
Houve viagens que substantivaram a arte de um tempo.
Passeios por viadutos que tinham a magia de transportar cidades inteiras pra dentro de uma vila, e colocar a fazenda que nasci dentro de uma bolha de sabão nos parques que me couberam.
Houve um tempo que ônibus me cruzavam, e eu neles brincava de condutor de charrete, que na janelinha me sentava como que em poltrona de cinema.
Houve uma possibilidade que me causou teatros, peças inesquecíveis, filmes memoráveis, exposições e que por uma fração de passado, não me colocou na sinfonia do realejo... Todo periquito, dono da sorte!
Houve sim e eu sei disso:
Uma mãe que me deu pro tempo como que soubesse que ele um dia me diria que houve um tempo.
Amigos abraçavam minhas calçadas, riam de meus casos pintados de circo e dançavam todas as minhas salas.
Tempo de mesas cheias, falas altas, tanto quanto a risada de minha visão que gostava do que via.
Houve um fazer e desfazer de malas felizes, que tinham o poder de transformar qualquer sexta numa de carnaval, onde eu era arlequim e as ruas com suas colombinas me atiravam samba pra eu passar.
As memórias são as chaves que abrem a oração, onde sou sujeito da ação.
Não sou solidão pelo que houve, sou gratidão por ter protagonizado um espetáculo, e não sozinho: gigantes estiveram lá comigo. Não importa se partiram por minhas escassas possibilidades hoje ou por outras razões... O show tem que continuar, eu vou seguir, porque tenho história pra contar.

Casciano Almeida Lopes

11.3.22

Vaga luz

Eu posso
ter pirilampos entre as palmas,
só não devo prendê-los.
A luz
tem a capacidade de desenhar a saída,
fechar as mãos
é trancar a porta e apagar a chave.

Casciano Lopes


Sombreado de penas

Quando estamos ressequidos demais,
recomenda-se
sentarmos à sombra de uma árvore.
Caso ela,
tanto quanto nós,
estiver ressentida sem folhas,
nela pássaros se plantarão,
suplantando a sequidão de nossos galhos.

Casciano Lopes

Paisagem de invento

Aqui em casa quando falta horizonte,
a gente inventa um traço,
desenha um sol amarelo
e estabelece um mar ao fundo;
água pouca pra não apagar o solar consolo.
Colocamos na janela o desenho
e criamos então: varais.
Aí penduramos nuvens,
de onde podem soprar e secar a lamúria
e fazer chover nossos olhos
de encurtar distâncias.

Casciano Lopes

10.3.22

Ainda dói

A saudade do que vi,
do que deixei de ver,
do tempo...
Especialmente de quando
passei por ele sem vê-lo.
Saudade,
é um passado que busca edição,
todo dia antes de zarparmos,
pula na nossa embarcação
e a caminho da ilha
nos olha de pertinho,
com jeito de redação.

Casciano Lopes

8.3.22

Passarinhos de toda sorte

Foi no meu viveiro que fizeram ninhos,
nos galhos de minha nascença cantaram pios
e voaram mais tarde levando meus telhados
quando cresci.
Com eles aprecio a vista desafiando o chão,
desde então.

Casciano Lopes


Haverá

Há dias em que sento nos meus trechos
só pra descansar da estrada.
Há batalhas que venço no interior
só pra evitar o podium da pele exposta.
Há noites que brinco de acordar
Só pra não perder o que amanhece em mim.
E assim,
havendo cada vez mais no existir,
Entardecerei.

Casciano Lopes

7.3.22

O tempo e sua janela

Lá fora há medos escancarados,
aqui dentro medos escondidos.
Seriam os mundos desafiadores, assustadores?
Tanto o de lá quanto o de cá
pedem só coragem,
um pouco mais de corpo avante.
Diante da ousadia dizem
que o temor como água corre.

Casciano Lopes


Vidrar

Quando o tempo açoita minhas janelas,
desafiando minhas grades de proteção,
descubro que devo deixar a dor do lado de fora,
assim a chuva lava,
o vento leva,
o sol queima
e se por acaso se empoeirar, 
não estará do meu lado de dentro,
a dor suja.

Casciano Lopes



Capaz de perfume

Que nossos dias
saibam nos dizer
tudo que as flores sabem
contar para os jardins.

Casciano Lopes

6.3.22

Diante dele quiçá como vinho

Devagarinho
pra eu não me acostumar.
Lentinho
pra que eu consiga admirar.
Mansinho
pra que minha carne possa suportar.
Ralentadinho
pro coração não sacolejar.
... Tempo, cuide com carinho
enquanto eu for caminho
e que eu o devolva na mesma medida 
quando for passarinho.

Casciano Lopes

5.3.22

É de pedra

Um dia me sentei numa pedra
e de cachimbo na mão pude ser quem quis.
Pude até produzir clorofila
quando com as árvores me fundi.
Não sei se foi
pela fumaça mágica do cachimbo de cura,
se pelas roupas que vestia
feito manequim pequeno de divindade
ou se pela pedra que tinha o poder
de produzir pensamentos.
O fato é que desde então
circulo por mundos e eles me elaboram todo,
enquanto durmo e acordo na filosofal.

Casciano Lopes

Lugar de dividir

Encontros existem
porque o caminho de compartilhar
é muito mais estrada que beco.

Casciano Lopes

Blindagem

Enquanto meu entorno estiver adornado de vontade,
meu contorno iluminado de quietude
e meu retrato souber falar de força...
Meu interior terá o tamanho das metrópoles,
meu profundo permitirá minha consulta sem senha
e meus medos saltarão do trem antes da estação.

Casciano Lopes

Lentes

Quando criança
pude brincar de gente grande,
adolescente de gente madura
e jovem de gente velha.
Agora posso sim continuar a brincar,
afinal,
não é isso que fazem as crianças?
Chico Anysio disse uma vez
que deveríamos nascer velhos
e morrer jovens.
Eu penso que
se os olhos guardarem o essencial,
feito aquelas fotografias
que guardam as gavetas,
nunca teremos idade,
teremos paisagem.

Casciano Lopes

4.3.22

Santa

Mãe não é apenas uma divindade,
é um lugar.
Uma delicada casa,
um sacro templo
e um milagre em forma de mundo.
Se não fosse assim,
talvez sem graça a humanidade,
viveria desprovida de santidade
e desabrigada de teto e chão,
sem rosário na mão.

Casciano Lopes

Lugar de mãe fora do verbo

Hoje...
Meu coração queria de novo ficar inteiro
naquela tua risada escancarada.
Meus olhos queriam enxergar primeiro
tuas receitas sendo preparadas com aquele esmero
de quem comete uma arte, um projeto arteiro.
Meus braços queriam te encontrar
dentro daquele abraço quando eu chegava
e hoje... Eu chegaria mais cedo.
Minhas pernas hoje caminhariam com mais pressa
pra dentro do teu colo que ouvia como reza.
Hoje,
minha lágrima perderia o leito
só porque teu riso de sim se deitou primeiro
no meu rosto de menino matreiro.
Ah!
Tem gosto daquele pão caseiro,
minha saudade de peito derradeiro,
meus verbos em tempo passado
tem o cheiro daquele teu café com bolo.
Tua presença deixou um tempo tão presente
que hoje penso saudade como uma pessoa...
Sem conjugação,
Daquele jeito e
fora do tempo,
assim como a ausência
que parece coisa fora do corpo.

Casciano Lopes

É preciso

Ainda é mar
se o céu pintar
uma tarde cinza.
Ainda é sol
se o artista cobrir
um trecho de mar
com seu navio.
Ainda é navegável
o homem
que se permitir tempestade
e nas velas saber esperar...
Passar.

Casciano Lopes

3.3.22

No dia que...

Foi me encontrando
que encontrei motivos.
Foi me embrenhando
nas esquinas de minhas vilas
que descobri as aldeias onde pude me despir.
Foi mergulhando nos rios sem saber nadar
que eles me levaram pro mar e em braçadas,
muitas vezes estúpidas, aprendi a nadar.
Foi sentando
tantas vezes no incômodo banco de pregos
que me achei martelo na construção
das vielas por onde precisava passar.
Foi me perdendo no que eu sabia
que aprendi a ter dúvidas
e saber que elas são questionadoras,
assim como eu,
então sentamos e pontuamos as interrogações.
Ainda tenho muito chão
dentro de poucas pernas,
mas não ando só.

Casciano Lopes

2.3.22

Princípio de observar

Quando o céu senta pra conversar
e a terra pra fazer silêncio vira teto
eu buscando ser passageiro
embora querendo ficar,
me vejo todo água
procurando um canto de escalar.
Entre a conversa e o quieto estar,
hei de aquietar
sem deixar de cantar as formas de calar.

Casciano Lopes

Solar

Ainda haverá outros sóis
Nem que nasçam em mim
Enquanto me ponho com eles.

Casciano Lopes

O jardim que nasce

Das importâncias todas
A que mais leva alma
Talvez seja um corpo capaz
De florir primaveras

Mesmo que se estendam
Invernos e outonos
Os verões aquecem o crer

E quem se torna importante
Pode ser vaso de cristal
Decorando os vãos de salas

E enchendo de vista
A casa de morar gente
Com jeito de flor
Nada em vão, gente.

Casciano Lopes

Portal

Na minha cidade tem um rio
onde mergulho pra colher pedrinhas do fundo.
Bem no fundo do bosque que a contorna
tem jabuticabeiras onde me demoro.
Nas ladeiras das casinhas sem portões
correm meninos,
que no fundo são como eu...
Com mania de água,
vivem a se espremer,
não resistem a um bom lugar de correr..
Bem nos olhos, lá no fundo,
vivem todas as possibilidades,
bem lá no fundo de minha cidade.

Casciano Lopes