Sou bom de me contar histórias, de instantes falar, de mim ouço contação, pra mim digo contos, me presto atenção, e penso que esse é o motivo pra continuar me ouvindo. É uma forma de ter sempre mais pra me contar.
Há falas inteiras que dispensam palavras, silêncios escandalosos, recuos sem margens de contenção, discursos executados, exaltados entre as linhas mudas dos palanques desativados. Analfabetos modos.
Implícito jeito de dizer.
Há leituras feitas na caligrafia invisível do livro das páginas brancas, narrações alcançadas pela licença da suposição, audição elaborada pela livre interpretação. Alfabetizado recurso de quem não entende, mas sente.
Minha agonia está longe dos laudos médicos, vai muito além dos consultórios. A razão da pena não está nas limitações visíveis, está aquém da pretensão de qualquer terapia; onde o que se propõe e o que se espera, é que eu fale de mim, sobre o que falta e o que cala minha pauta.
Tenho pra mim que não há o que dizer do que falta, pra ausências é impossível emprestar expressão, ninguém conhece uma dor sem tê-la, enfim, a amputação pode ser realidade, tanto quanto eu, o silêncio interno que a diagnostica está subjetivado, está tão dentro e reservado, que perdeu o seu nome pra agonia.
Talvez quando Oswaldo Montenegro disse: "que a corda não sabote o equilibrista", ele falasse da correção a que alguns se submetem, dos sonhos de que outros se alimentam, da inerente vontade não cumprida, do merecimento tardio, do reconhecimento atrasado ou da saudade vencida quando já não se tem o tempo pra dizer, quando os ouvidos se mudam pra distante... talvez do tempo dissesse o que nem precisaria dizer, não fossem as réguas tão altas, não fosse a condição da corda a de desafiar o passo.
Quando me vi, estava assim, sem o pó que disfarça o rosto, sem a febre que arde os termômetros, sem o sono que castiga os lençóis, sem a feira que faz gritar o feirante, sem a roda que faz correr a água do monjolo... Quando assim me vi, quase rudimentar, quase antigo na prateleira de poeira, eis que venta lá no quintal de meu esquecimento, e as amoras caem dos pés, eu caio em mim; tingimos nosso chão de tudo que esperou ventar o vento esquecido.
Instantes me espreitam nos passeios da minha mente, catalogados na estante da sala, conseguem me ler no sofá.
Amantes do tempo que se instalam, conhecem o caminho da cama pra me abraçar de corpo inteiro, estão por toda a parte, tropeçam nos meus tapetes, esbarram no meu constante jeito de pensar as cortinas, arranham a lousa que tenho no corredor, onde fixo lembretes com alfinetes coloridos... instantes.
Eles se encaixam entre a mobília, se espremem entre a cintura e o pescoço da minha casa, às vezes bagunçam gavetas, mas organizam em mim o que devo lembrar, o que preciso esquecer, e dentro do meu pequeno espaço, o que dói sabem esconder... instantes.
A gente podia dar uma volta de mãos dadas naquela rua antiga, só pra colocar a risada em dia, ir naquela pracinha que tinha um coreto, sentar naquele banco rodeado de canteiros de kalanchoes, só pra falar de abraços. A gente podia cantar bem alto aquela canção engraçada, a que nos apresentou naquele parquinho, e de novo lá, pegar carona na roda gigante pra comer pipoca, enquanto do alto fotografa a cidade numa máquina fotográfica.
Rebobinar aquele velho filme, onde a alegria nunca tinha pressa e o calçamento de paralelepípedos terminava naquela lojinha de artesanato, onde vendia de tudo, até amuleto de espantar tristeza...
Na casa de minha criança moram todos os sonhos aprendidos ainda na infância... quando menino fiz a casa de caixa de papelão, cresci junto com ela, hoje ela vive no peito, com telhado gasto, chão de assoalho riscado de anos; um risco pra cada um, as cores das paredes que os lápis pintaram empalideceram.
Ainda vivem sonhos na casa, o menino ainda mora nela, e eu só vivo porque sou a caixa que sonha.
Esperar carrega a esperança na força do verbo. A efetivação do milagre depende da persistência que este verbo traz, ele tem a resiliência como parceira e a paciência como coadjuvante.
A noite tem a certeza de que o dia vem, e conjuga calada esse aguardar independente de ponteiros; não é adiantando o relógio que a convenceremos de que findou seu breu.