10.9.25

Tomai e comei

Vale a luta...

Serenar os campos
Revolver a terra
Semear a semente

Ver crescer o trigo
Colher pra dividir
O fazer do pão

Sempre faz valer
A absoluta mão
Que sabe de pão.

Casciano Lopes

RegaDOR

Ser abrigo é também se deixar chover.
Viver vale,
e a gota que cai sabe disso,
disse o broto que esperava.

Casciano Lopes

Num canto de vida

Nos nossos quintais de sobrevivência encontramos a seca da busca incessante pela água que faça represa na garganta, mas também encontramos a liberdade das vasilhas que cantam toda vez que amparam a goteira de nossa casa de telha e o suor de nossa esperança encoberta.

Casciano Lopes

Ouço ela bater

Eu vou me doer inteiro
cada vez que uma saudade me estapear,
não sou a metade do que vi,
nem a metade do que senti...
Por isso, sinto.

Casciano Lopes

8.9.25

Doceiro

Quando eu fizer doce, sente-se e aprume o paladar, aproveite o dulçor de cada nota nas papilas. Me deixe perceber que acertei o ponto de fervura, me deixe entender de apurar o açúcar das coisas junto ao fogo, me permita degustar o caramelo que é fazer pelo outro, o que assim, posso fazer por mim... adoçar a vida, que precisa ainda aprender a experiência do sabor.
Cora Coralina disse num poema seu: "Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça".
No tacho, ou no mundo, sorrir ainda que no rosto do outro, também importa.

Casciano Lopes

6.9.25

Meia lua

Ao longo de nossa vida, a paisagem se esconde, a vista embaralha as saídas como cartas, nossa vila interna brinca de se esconder atrás dos prédios que facilitam obstáculos... mas sempre haverá uma luz que desvenda passagens, mesmo que seja a de uma lua que caça brechas entre a noite tímida da nossa angústia e a madrugada calada do nosso medo... basta meia luz pra apontar uma porta que caiba nossa cidade inteira.

Casciano Lopes

Palavra apontada

Com o tempo a gente entende...
Que o poema e o poeta são a mesma pessoa.
Que a caneta e o papel dividem a mesma cena.
Que a letra e a frase ocupam a mesma fala.
Que não dizer também é texto.
Que a boca cala o que a pena grita... por tempo.
Com o tempo.
Só o tempo.

Casciano Lopes

Sem fugir de mim

Me sinto um abrigo
de refugiados de guerra...
Tantas vezes me senti palestino,
outras tantas, colombiano, venezuelano...
Nigérias vivem em mim.
Também moro no Sudão,
na República Democrática do Congo.
Sou todos eles,
sou um país de histórias múltiplas,
nos habitamos nessa estampa
que envolve esse corpo solo,
feito de meus medos,
de estilhaços e marcas de combate,
mas também de curativos
e de bandeira de paz.

Casciano Lopes

Datado

E quando setembro findar...
E quando outubro chegar...
E quando, e quando...
Enquanto isso,
a vida segue desconhecendo meses,
arquivando o que se faz pra memorar o hoje.

Casciano Lopes

4.9.25

Um dia dormi

Um dia, sem que me avisassem, acordei diferente. Pasmem!
De repente...
Perdi o tempo do compasso dentro do meu caminhar, os passos lentos confundiram o andar e a pressa precisou sentar.
Lentamente fui perdendo agilidade e, aos poucos, senti comprometida a possibilidade de ser de novo quem um dia dormi...
As vontades, embora latentes, sofreram de atrofia.
Em bêbada coragem, aprendi que, na vida, a gente morre um pouco todo dia, renasce também... todo dia, a gente dorme muitas vezes e desperta outras tantas, quase nunca a mesma pessoa, quase nunca...
Os olhos perdem lentamente seu melhor ângulo, enquanto o tato ganha funções de visão, a caligrafia, que desaprende o desenho da letra, tem na mente alfabetizada, a memória de tudo que não pode esquecer.
O medo das ruas, que viram estranhas para os pés, ou das calçadas, que fingem passeio, quer me isolar... Parece que não me verem passar é uma questão pública, e eu preciso continuar passando... no caminho que fiz, que faço e que farei. Porque se perdi movimentos, ganhei espaços que nunca sondei aqui dentro de mim. Ainda me perco num labirinto infinito do que não posso e, no que ainda posso, agradeço aos que estendem as mãos, aos que me espiam com um olhar cúmplice, aos que aliviam os degraus da escada pra que eu suba e aos que me permitem nela sentar pra conversar com a calma, a que ainda me diz que eu sou capaz em outra condição, onde todo dia descubro um mundo novo com suas formas de girar. Porque gira esse mundo, dentro de mim, onde nada mais está no lugar de antes. Tudo gira e muda de lugar o tempo todo. Tenho lugares que não conhecia e o desafio é gostar de estar neles, os sabendo temporários, como eram os de ontem que eu não sabia e agora sei.

Casciano Lopes

2.9.25

Fundo do medo

Sou só uma pequena vila
onde moram os temores da cidade grande,
um pequeno trecho de mapa
onde vive um lugar do fim do mundo.

Casciano Lopes

Trazer e levar

Os ventos vêm para tanger
a poeira dos nossos guardados...
embora tragam outra,
outros virão para arrastarem os acúmulos.

Casciano Lopes