30.7.24

Terra em cinzas

Para a liberdade foram
inventadas asas,
para as distâncias
foram desenhados céus
que coloriram de azuis
para que pudéssemos suportar
o cinza que encurta
o voo livre.

Casciano Lopes

29.7.24

Medicado

Quando acordo e olho o dia,
não espero que ele me renda saúde,
mas que me cure de mim.

Casciano Lopes

Eu em 3x4

Há uma reserva em mim, nem sabia e não conhecia, há em mim.
Tenho praias, varandas e redes, campos e verdes margeando riachos onde cantam uirapurus.
Em mim, tenho matas virgens e outras com trilhas e aldeias, há picos altos e cachoeiras de encostas com carpas enfeitando lagos depois da queda.
Há lagos em mim e talvez por isso, suporto a dureza do concreto, o cinza que tinge os prédios que moro e o deserto da cidade que me ronda sem achar lugar de fazer retrato em mim.

Casciano Lopes

Compreendendo a marcha

Quando corri nas calçadas, buscando passagem entre a multidão, reclamando do fluxo obstruído e chamando de agilidade o que era pressa... Era só um homem confundindo o tempo substantivo com o verbo alcançar... metas que estabeleci e que me cobrei; como se pagar a conta fosse viver e daí, gastei o tempo, deixando de passear por ele e apenas passei.
Hoje, que nas ruas e acostamentos do caminho, me empurram porque não posso me apressar e, eles esperarem, passeio feito verbo pelos tempos da conjugação, flexiono a ação de ansiar... porque agora a minha meta não é mais a de chegar no palanque dos grandes discursos, é alcançar a minha tribuna interna, onde nem preciso falar, porque minha audição está ocupada ouvindo o vento passar.

Casciano Lopes

24.7.24

Suspiro

Tem certas coisas que não sei dizer, faço tal qual o silêncio da flor que não sabe chorar seus espinhos, tal qual a madrugada que parte calada pro dia chegar... Na falta do que dizer, sinto em volume alto e ouço acima do que a vista alcança, pra arrancar de mim nem que seja um espanto mudo do que me mostra tudo e todos os que como eu, não podem ou sabem dizer.

Casciano Lopes

Protagonista

O desafio muitas vezes é o desafiante, que olha pro oponente como quem vê um inimigo a ser derrotado, quando deveria olhar nele um trajeto aliado; onde não existe podium pro melhor, apenas uma plataforma pra parceria; onde vencer é bem mais que medalha no peito... é sendo desafiado, não deixar ninguém pelo caminho, nem mesmo o antagonista da história.

Casciano Lopes

Lar

É comum se sentir desconfortável fora de casa, talvez por isso, vez ou outra nos sintamos apertados no mundo... A agonia pode ser um antídoto da permanência, pra que a gente não goste demais de ficar e um dia, aceite voltar pra casa.

Casciano Lopes

Encandeia

O brilho atuante na vida do vivente deve exceder o da chama de uma vela que tem curta duração, deve ter a força dos potentes geradores de uma usina, deve ter excedentes pra não faltar, fornecer pra ser farol que guia e distribuir iluminação pra ser o que ampara a luz, caso contrário, o que professa vida se torna apenas uma casa de máquinas desativada.

Casciano Lopes

23.7.24

Clara evidência ocupada

O que nos move está além da luz que brilha lá fora,
não está passivo no banco da praça...
Está ativo nas veias de nosso sentimento,
circulando pela importância de iluminar
nosso breu interior enquanto há vida.

Casciano Lopes

A gente abre mão

Do que dói porque fica rouco, do que não chega porque deixa louco, de tudo o que nos faz pouco, num mundo onde a demora nos torna uma espera do tudo e pirraça a alegria... A gente abre mão dos danos, da tristeza em nome de tudo o que pode ser, e pode!
A gente pode fazer dos anos uma chegada, uma estadia dentro da gente... A gente pode polir os arranhões da nossa mobília enquanto descobre aquilo que nunca deixa de dar voz, nem tão pouco de lustrar nossa durável esperança do que não se abre mão; nossa capacidade de ser, de morar na gente; não na vontade, mas na possibilidade da descoberta do quanto vale o que se gasta, do que nos gasta... Tempo não se abre mão.

Casciano Lopes

22.7.24

Somos quando em exposição

A chuva que molha o que está exposto, não tira a beleza exibida, converte em lavada a poeira e escorre na calçada sua função cumprida.
Obra escondida não encontra sua missão, assim como a água que sem garganta não encontra a sede pra saciação.

Casciano Lopes

Absolutamente

Tudo o que puder ser visto com a lente da contemplação, terá a ação de filtragem, retendo resíduos e deixando menos turva a visão, gerando um humano em sua ocasião.

Casciano Lopes

20.7.24

Ouvido pra penas

De todos os motivos pra gostar da viagem, ouvir passarinhos ainda é o que mais faz valer a passagem.
Acho uma pena viajar sem o linguajar desses guias que sabem solfejar como ninguém, tanto as partidas, quanto as chegadas...
Marejar, mas cantar.

Casciano Lopes

Bolso, sei remendar

Como qualquer pessoa tive vontades, desejos que viraram passado e outros que se mudaram pro futuro com a alcunha de sonhos...
De todos que deixaram em mim a permanência do sabor de suas virtudes, guardo a degustação da força que, embora impermanente a depender das circunstâncias, tem me levado adiante, apesar da fragilidade do esgarçado bolso, onde os guardo todos... os sonhos que, quando não se realizam por descaso ou acaso do que não controlo, mudam e me ensinam a adaptação, a resiliência e a resignação, não demais, apenas o suficiente pra continuar a vida, com vontade.

Casciano Lopes

Segundos escritores

Vibro afim de escrever cada minuto
depois que descobri páginas em branco
no livro das horas passadas...
Instantes que, se riram, não vi.

Casciano Lopes

19.7.24

Ponto zero

Nas madrugadas
o silêncio sabe se explicar e,
por ser ouvido,
cala quando acordam os pensamentos,
ensaiando cochilos
entre a fala e o que dizer.

Casciano Lopes

Laço de duas pontas

A resistência enfeita a vida
do presente que é viver.

Casciano Lopes

E chorei

Quando pedi clemência,
era dos meus equívocos que falava;
porque toda vez que me vi grande,
precisei da minha criança...
Menino pequeno demais.

Casciano Lopes

Uno estar

Quando a gente caiu e ainda cai... porque a vida ensina tombar e não se prostrar, a gente levantou e se levanta todo dia, nem sempre só, nos apoiamos um no outro pra sustentar aquilo em que acreditamos... O amor que não pede nada em troca, só a presença mesmo.

Casciano Lopes

18.7.24

Ato de resistência

O que testemunhei foi a receita pra minha dor, calei o sofrimento com o lenitivo do medicamento da alegria.
Os diagnósticos que a vida me lavrou, eu não contestei e ainda não revogo qualquer decisão; o que faço é apelar pra tudo que vi pra que me ampare. Rogo pelo vigor mais que a prece roga pelo favor. Isso me faz acreditar que a sentença da tristeza é bem mais fatal que o placebo. Ser alegre é meu remédio e a cura não é a ausência do desconforto, é saber lidar com ele pra que jamais tome o meu lugar de testemunhar o riso.

Casciano Lopes

16.7.24

Pés no chão

O chão se estendeu diante dos meus pés e eu o percebi na pisada, mais duro que de costume. Senti nas passadas um incômodo nos calcanhares, um desconforto entre os pododáctilos gerou mais dureza na viagem.
De maneira que caminhei metros e sentei pra repousar intervalos de profunda vontade de voltar, não fosse extensa a estrada de volta, teria voltado, mas dos quilômetros que faltavam não sabia e os percorridos conhecia... segui.
Ainda sigo na empreitada dos passos, precisei e ainda preciso aliviar o peso da bagagem em cada pausa que faço, embora a poeira do caminho tenha encerado meus olhos há milhas, por acreditar nas varandas sombreadas de guardar corpo cansado, sigo.
E acreditando em milagres e outros acasos, costuro meus casos em cada palmo da linha que liga meu homem passado ao do futuro, do que pensei de mim e no que me tornei, do que caminhou as descrenças da paisagem e que, agora, busca a crença debaixo das árvores onde sua o repouso dos viajantes.

Casciano Lopes

O amor em vidência

Na conjunção do amor, naquele amplo e irrestrito que tateia os casais que se unem para sempre, há bem mais que pontos ligados na terra, há laços enfeitados nos céus, estabelecendo a expansão aqui, e lá, a comunicação dos astros.

Casciano Lopes

15.7.24

Ego projetado

O ego deslocado faz você olhar o outro sem o filtro da autocrítica, culpabilzando suas deficiências em causas fora de si e agindo assim, como se o mundo tivesse que agir no seu acordo... O ego em desequilíbrio, tem dificuldade de reconhecer a proporção que separa a falha do acerto, a falta da sobra, especialmente quando está em nós o déficit desse equilíbrio.

Casciano Lopes

14.7.24

Sinto muito

Não sei se por zodíaco, astral ou coisa assim, sou emocionado. Um fugitivo da apatia e, por empatia, vivo no esconderijo do exacerbado.
Sou de distância curta entre o sorriso e a lágrima, embora curta um longo e a outra curta, sou emocionado com as duas pontas que fazem pontes pra que tudo me atravesse, enquanto eu sigo como cidade exposta, sem muros de contenção, visitado, porque sou emocionado.

Casciano Lopes

Margens

Na conversa das pedras,
existe o fundo musical das águas.
E nas rasuras das letras,
há o papel que se comprime pra caber
o que se tem a dizer como que entre réguas.

Casciano Lopes


A rigor

Nos rigores da vida, a gente aprende seus ritos, não pra seguir cego suas cobranças, mas pra entender a dualidade da severidade; que tem sempre dois tempos na sua marcação: o da pontualidade exigida, mas também o da alegria daquele minuto que marca a divisão entre o cansaço da espera e o descanso dela, sem a aspereza das perguntas da própria vida.

Casciano Lopes

13.7.24

Que haja a combustão

O bom não é existir simplesmente, o candieiro existe e é inútil apagado. O ideal é que, sendo um suporte de luz, nos emprestemos ao serviço da claridade, apesar dos ventos. Assim, a branda chama é seguida e nada haverá que impeça os ideais dos que esperam enxergar. E nada nos roubará a aptidão em desiludir a escuridão.

Casciano Lopes

12.7.24

A bruma que vem, vai

Assim como a névoa se dissipa pra que aconteça outra cena em outro dia, outros momentos acenam atrás das cortinas, esperando o palco da nossa admiração estar disponível pra estreia...
No teatro do peito da vida não falta espetáculo e, se faltar público, seremos atores e plateia da história, porque na encenação da neblina, não importarão os aplausos e nem se o cartaz está visível ou escondido pela cerração, valerá o dito, o escrito interpretado, a plena convicção do não visto, mas o sabido ato que aguarda o cenário se abrir pra estrear sob nossa direção.

Casciano Lopes

11.7.24

Falar ainda não depende

Eu não quis depender, mas dependo.
Do abraço ao sorriso, do cheiro ao toque, da mão ao auxílio, do braço ao colo, da paciência ao ouvido... eu dependo.
Dependo até de mim! Talvez a maior das dependências... a do meu amor por algo maior que eu e que vive dentro de mim, capaz de me enxergar quando o espelho me nega presença, algo que me recorda que não sou daqui, que me remete como carta nas mãos do vento; quando me descubro objeto quase inanimado, mas que voa...
Enfim, dependo de voo, de esperança no desconhecido, de coragem diante do medo bruto, aliás, luto pra que a brutalidade não me embruteça demais diante da guerra que travo todos os dias contra a dependência de quem fui, na ânsia da independência de quem serei amanhã.

Casciano Lopes

Um buquê de prece

Ainda que o deserto me cerque, que o caminho fuja do certo e que a resposta não me queira por perto...
Estarei a salvo se dentro de mim houver jardins, se bem onde mora a pergunta, o silêncio souber calar pra que o perfume aberto saiba andar pelos canteiros e, se incerto for o passo, que seja desperto o olhar pra enxergar mais que miragens.

Casciano Lopes

10.7.24

Árvore em solo

Ontem minhas copas estavam frondosas,
ramos cheios de opções possibilitavam saídas.
O caule robusto parecia que sustentava a terra,
embora o mundo dissesse o contrário.

Os verões foram fartos,
sombras convidaram cadeiras e ocupantes.
As primaveras nunca souberam de dieta,
flores e juras engordaram as cores das faces.

Hoje, outono seguido de inverno,
galhos retorcidos de frio não são agasalhos.
O tronco arranhado de promessas tatuadas,
se finca no entorno porque aprendeu a sede.

Amanhã, na saciedade de meus frutos,
sei que matarei a fome pra manter a raiz.
A raiz... a que sustenta a ventania e que, se funda,
garante a vista e promete estações.

Casciano Lopes

9.7.24

Na horizontal

Ninguém se deita sem o direito ao prazer,
taí a terra estirada trazendo essa certeza,
quando em amor com as árvores,
se dão em flores.

Casciano Lopes

Termômetro e travesseiro

A madrugada fria e chuvosa, embora saiba dos riscos de pôr a dormir toda a gente, ainda acredita no sonho da maioria, e por isso, deixa acesa a rua, porque sabe que terá que ceder seu lugar pros sonhadores nela passearem o dia, com ou sem casacos, não importa, mas com as mãos dispostas porque idealizaram, e por isso, dormiram.

Casciano Lopes

Não são só danos, os anos

Quando toco por necessidade
nas marcas que o tempo me causou,
deixo de lado a agressividade
em nome de tudo que me provocou flores...
O perfume precisa da passividade do meu olfato
pra ter sua atividade, e eu por cumplicidade,
preciso do tempo pra me entender primavera,
embora eu tenha vivido e ainda viva
a vulnerabilidade dos invernos.

Casciano Lopes

Porque aprendi ver mais longe

Aprendi me enxergar pra poder fazer valer cada centímetro de minha pele sentida em curta distância, ardida não mais que em média e urdida no feitio de meus olhos, pra manter bem longe e distante da presença, a cegueira de quem não quis me ver.
Um dia a Santa me ensinou, e olhando de perto aprendi todo o sagrado, desde então, rezo pras longas durações do afeto e pras médias vontades ficarem enormes, antes que eu me encurte na curta distância de mim.

Casciano Lopes



7.7.24

A vida que se retira causa mais danos que quem dela se desobriga

A gente não enfrenta o imponderável
porque é forte e resiliente,
mas porque
precisa calar a fraqueza da desistência
antes que ela nos emudeça.

Casciano Lopes

Trincheiras

As batalhas mais duras são travadas dentro de mim, entre quem sou e quem gostaria de ser, são guerras dividindo, por linhas imaginárias, meus países colonizados e sedentos por independência, das minhas aldeias libertas desde que aqui cheguei.
Luto diariamente pra desviar os canhões, tanto os pra mim apontados, quanto os que investem meus indicadores de mira, travo peleja pra que as pedras de meu sono não me encubram, uso-as para confeitar os bolsos... buscando mais a experiência que não pesa, que as medalhas que arrastam os pés nos campos.
Os combates dormem depois e acordam antes de mim, em sentinela guardam minhas armas pra que eu não desista de mim e pra que eu saiba cada dia mais como me vencer, assim posso continuar lutando pra ser livre.

Casciano Lopes

Vocalização

Existe mais força dentro do sim que nos dizemos, que no 'não' que nos assombra quando tenta convencer a fraqueza de que ela não precisa de palavra...
Assim como o pensamento, a palavra cria, e então, o caminho elabora passagem, por onde só anda quem acredita em portas.
Há o que torna mais cega a estrada e bêbada a viagem.... o vocábulo empobrecido por desventura. Mas há a possibilidade, a aventura possível e a sobriedade visionária e bem risonha na face de quem comete no vocal, um 'sim'.

Casciano Lopes

De batuta

O instante que rege a orquestra do grande teatro pede bem mais que a acústica, músicos e sua regência; exige a afinação do tempo, a divisão perfeita entre as pausas e a marcação dos ponteiros da respiração, na inspiração capaz de compor a música que deverá ficar em partitura pra que outros leiam e executem a vida.

Casciano Lopes

4.7.24

Domei?

De maneira que feito cavalo bravo ela corria, parecia ter pressa, mas era ousadia.
Nos becos, como se estivesse ensaboada se espremia, passava, atravessava o vale pantanoso e com a mesma energia levava suas crinas pros altos montes pra sofrer ventania.
Embora fosse passiva a canseira, quando o sol em parceria com o orvalho das sete da manhã, permitia uma grama tenra pro desjejum e a tardezinha oferecia, enquanto caía, cama mole no pé da serra, parece que sabia mais do caminho que o próprio caminho, e não temia... Dormia só o suficiente pra que fosse ativa a coragem no cair da noite, pra que o dia não invadisse a lua e pra que a calmaria das estrelas não mentisse pras patas, a distância.
E quando nasci, olhei, era só a vida que passava... Montei.
A gente tenta domar...
Não sei.

Casciano Lopes

3.7.24

Residência móvel

Embora saibamos que embaixo de nossa pele mora a finitude dos ossos, lutamos pela carne; pra que ela se mantenha minimamente conservada para abrigar nosso morador, como um imóvel que locamos e zelamos pra morar.
No tempo da moradia, colorimos nossas paredes, retocamos as rachaduras pra que não fuja o melhor de nós e zelamos da vontade de permanecer; pra que ela entenda que em todo o tempo estaremos de mudança, passando, viajando, e que, o importante não é fixarmos o endereço no corpo, é enquanto estivermos nele, saber partir um pouco por dia sem perder a reverência pelo abrigo.
Nós nos deixamos pelo caminho... atitudes, palavras, olhares, abraços... pedaços que servirão pra que outros se componham e no dia de finalizar a estadia, levaremos apenas a essência de quem fomos, o amor que semeamos e o que em nós plantaram suas evidências, levaremos o zelo do aprendizado e o apelo cumprido no dividir daquilo que jamais possuímos... o nosso mundo, particular e infinito.

Casciano Lopes

2.7.24

Esquece... passa!

Daqui a seis meses nem me importarei com a gastura de hoje... Nela gastarei os dias e lá adiante outras questões ocuparão seu lugar.
Tudo passa feito rio com tudo dentro, inclusive eu.
Eu sempre torço pelo riso, pela fartura do cheiro bom e pela secura da água salgada nos olhos, porque no mar a quero tanta que até rio de transbordamento.

Casciano Lopes

Viver tem que ter remédio

Preciso me curar de mim pra sair da fila de espera, preciso me curar de mim.
Ainda tenho que domar o ego, que dosar o remédio da experiência pra que não crie metástase a presunção.
Ainda medico meu espelho pra que ele entenda sobre a plástica falível da pele, ainda aplico entre a carne e quem mora dentro, a injeção da dúvida, pra que a certeza não me adoeça demais.
Luto na fila dos sobreviventes do campo de batalha pra que as amputações do olhar sejam evitadas, pra que as mãos não percam o tato que tanto o outro precisa e pra que haja na receita da consulta mais que analgésicos, a cura.

Casciano Lopes

1.7.24

O riso não tem nada a ver com isso

Vou te contar que a dor pediu segredo ao gemido muitas vezes, que a lágrima aprendeu o silêncio com o suspiro que forjou a palavra que não disse, que o grito andou de conluio com o sussurro e acordaram um tom ameno que não denunciasse na fala o que corria na pele... onde ardeu a febre só sentida no toque de quem com afeto me afetou, tocou.

Casciano Lopes

Laudo em verso

Eu comecei a escrever ainda bem pequeno, antes de ser alfabetizado.
Achava a cantoria na roupa suja que minha mãe surrava no batedor da lavadeira, admirava o caminho da fumaça dos cachimbos do meu avô e dos compadres e comadres lá de casa, acreditava nos dedos de prosas acontecidas no alpendre e vestia as personagens que passeavam pelo ouvido infante de um figurino que ainda guardo em meu camarim, comemorava o dia do benzimento e construía frases inteiras pro cochichado da benzedeira que empunhava seu ramo de arruda, como quem manuseasse com eficiência um bisturi, vigiava os passarinhos pra saber se eles acreditariam em novos amigos ao se verem refletidos nas águas do córrego que corria e dividia a nossa fazenda da do vizinho; córrego, aliás, que sabia lavar pedra com música pra gente dormir...
É, acho que eu já escrevia, a poesia me acometeu ainda pequeno e nunca mais sarei.

Casciano Lopes