30.10.24

Invenção de verbo... 'Vidar'

Onde a vida fique de bem com o espelho,
onde ela possa sentar-se com a verdade
sem vergonha do passado,
onde na dança das cadeiras;
a mentira fique em pé.
A vida... onde ela saiba contar histórias,
que saiba rir mais de si que dos outros,
que goste mais de ser remetente
que destinatária. Onde há vida...
É lá que quero estar.

Casciano Lopes

Bilhete tarde

Eu não pude chegar mais cedo,
o relógio bem que gritou,
mas o pulso fingiu-se de surdo...
Eu não pude.
Quis correr, e quando quis,
já era tarde
no horizonte das minhas pernas.
Você e eu um dia entenderemos
porque meus pés dormiram tão cedo.
Talvez você queira saber...
que eu não pude.

Casciano Lopes

Poema duro

Talvez a dor cesse da noite para o dia.
Talvez do dia para a noite, cesse o desatino.
Talvez a força bruta da dor perca a força.
Talvez vire fraca a dor forte de ontem.
Talvez o amanhã venha brando, ou não.
Talvez nunca.
Talvez...
Certo é o verso que me faz candura
e me provoca brandura apesar de doer;
o que vejo passar sem saber
se verei ou passarei.

Casciano Lopes

28.10.24

Agenda ocupada

Eu estive sempre ocupado com o que podia fazer, talvez por isso, tenha me faltado tempo para a amargura... ela se ocupa demais contabilizando vontades e, displicente, vive aborrecida. O cálculo do que falta tem resultado sempre menor do que o que sobra.
Me consumiu tudo o que me fartava, de modo que jamais faltou ou falta alguma coisa.
Já me gasta o que tenho, me basta.

Casciano Lopes

Direito ao belo

Nada pode ofuscar a beleza se há um sol na nossa vida, os invernos de nossa alma se derretem e nossos campos de acreditar retomam sempre a jornada que o calor promete, quando cedemos ao mundo nossa paisagem.

Casciano Lopes

27.10.24

Parto

Passava por ali sem ser notada,
todo dia passava.
Sentava-se nos degraus dos dias,
descansava semanas.
Prometia e cumpria...
Anos e estações,
sujeita a passos,
mas também cama
e berçário de sonhos.
Parecia incubadora,
merecia o título da terra gestante...
gestação.
E de repente eclodia;
num viajante,
num passante,
num olhar atento
que vigiava seu estado de admiração...
A vida.

Casciano Lopes

Embarque de vivências

Há portais em nossa experiência humana,
passagens que nos exigem inteiros...
nossa viagem não é interrompida
pra que possamos ensaiar o novo cenário.
Metades não cruzam pontes,
porque nesta passagem não se paga meia.

Casciano Lopes

25.10.24

Porque somos lugares

Não tenho dúvidas que habitamos os lugares na mesma proporção que eles nos habitam... Pessoas são lugares, caminhos na multidão são lugares, silêncio e banco de espera são lugares... o outro que me continua e a minha ida na sua direção são lugares.
Moramos todos no mesmo encontro; no abraço que damos em tudo que sentimos entre chegadas e partidas.

Casciano Lopes

Era uma casa...

Há cidades inteiras morando no quintal do mundo e, se moramos no mundo, somos também a casa dele... somos formados de múltiplos endereços. Se sem muros, compreendermos essa geografia, mais que destinos, nos tornaremos cartões postais da vida.

Casciano Lopes

A viagem e o observador

Na viagem que a vida me propõe, meus pés tocam as folhas do caminho com a mesma reverência dos meus olhos, quando olham as mesmas folhas nas árvores antes de caírem.

Casciano Lopes

22.10.24

Ajuste de asas

No fundo,
vou experimentando os voos...
se rasos, altos ou profundos,
tento aprender;
o vento das alturas,
sua direção no tempo de solo
ou a sua liberdade
provocada em minhas funduras.

Casciano Lopes

Aos poetas

Que as pedras
continuem no caminho
de Drummond.

Casciano Lopes

19.10.24

Aos que gritam calados e sabem ler silêncios

Sempre fui exagerado... até hoje gosto de abraço demorado, de beijo que sabe prometer, de gente que não vai embora, de sorriso largo e espontâneo. Aprecio o muito das coisas.
Mesmo do silêncio eu tiro a contemplação que ele permite, e gosto de quem sabe calar do meu lado pra assistir a meditação na tempestade.
O café quente, a cerveja gelada e o sentimento... sem anestesia, por favor.

Casciano Lopes

18.10.24

Feito sem adeus

A gente não é treinado para os finais... somos preparados o tempo todo para a eternidade das coisas e pessoas.
A gente sabe que tudo acaba, mas finge não saber para que o mundo nos caiba e caiba em nós.
A gente brinca de 'para sempre', para não levar tão a sério a dureza das partidas e das horas não mais divididas.
A gente não possui, mas quer ser possuidor... seja da alegria provocada em riso alto ou daquela presença calada... possuir; momentos e suas frações de perenidade, e que não padeça jamais de fins.
A gente acaba como as coisas, volta pra gaveta ou troca de armário.
E porque a gente é humano, talvez pareça uma espécie de santo, só que andamos todos carentes de um pouco do devaneio de que dure o milagre de partilhar.

Casciano Lopes

Ganha-se com o tempo

Quando perdi, e perco todo dia, algo no processo dessa vida; quando esqueci minha audição em falas passadas, em mesas de reuniões e em discursos inflamados, não voltei para buscá-los... ouvidos.
Me adaptei e só hoje compreendo que no mundo das perdas ganhei o silêncio. Fui treinado para apreciá-lo e descobri que no fim da tarde, da lida, da noite, das semanas idas... o que a gente quer é não ouvir gritos e nem pautas de exigências.
A gente quer mesmo é o descompromisso calado, a inteligência sem palanque.
Aprovar o silêncio é o que a gente aprende, apesar do tempo que, de quando em quando, faz barulho.

Casciano Lopes

Fundo de olho

O olhar delicado
permite a dor,
mas inibe seu grito.

Casciano Lopes

15.10.24

Meu povo em meu Tempo

Procuro o tempo nas escavações que faço e nas expedições que organizo... pequenas pás me auxiliam na busca; pra não machucar segundos e nem ferir de pressa os minutos achados. Pincéis limpam horas passadas pra que saibam contar com ponteiros no papel da minha alma, feito caneta; depois de limpar a poeira de forma protegida, pra que o vento não carregue, e pra não virar pó tudo o que meus ancestrais disseram sobre os dias.
... E é só assim que os anos se acalmarão em meus séculos, depois de saberem ouvir o tempo deles.

Casciano Lopes

Por isso cavo

Foi cavando o que eu acreditava abrigo que enterrei tudo o que me colocava na chuva, tudo o que me fazia alvo dos bombardeios...
Agora procuro me molhar. O telhado já não faz tanta falta e as bombas em minas terrestres não amputam mais; não omitem a vontade da descoberta, do interesse por mim e por tudo que guardei, mas não devia.
Meu refúgio, hoje, é exposto no tempo da exposição, escancarado nas cercas de arames farpados, assim, não peco com a ausência do esconderijo num mundo que exige presença pra remissão... onde há perdão pro tempo descoberto.

Casciano Lopes

13.10.24

Estações

Eu sei que andei distraído...
Muitas folhas de árvores caíram no passeio e eu nem observei o outono que se deitou na estrada.
Caído no banco da praça, um botão de rosa quase gritou a primavera e eu, ocupado com o ajuste dos óculos, nem notei.
Eu sei...
Que enquanto tremia de inverno: ele passava dentro de casacos baratos e caros diante dos meus olhos que esperavam o verão.
Eu...
Verão e tantos verões arderam nos meus quintais e eu poupei a pele, escondi a sombra nas mãos pra, como lenço, banir o suor da minha febre.
Sei...
Que a fuga que me fez caça, hoje me faz caçador...
E às vezes me encontro.

Casciano Lopes