6.10.15

Carta à vida

No balanço da canoa percebo que tenho mais a agradecer que pedir ou reclamar. No espelho percebo marcas do tempo sim, mas delas não posso lamentar; em cada uma das ranhuras compreendo um aprendizado. O que me faz mais maduro hoje ainda me torna imaturo para o amanhã, e é isso que anima e fortalece: o saber do meu caminho evolutivo e o querer percorrê-lo ainda mais outro tanto, para então, quem sabe, poder dividir nesta e noutras tantas vidas o conhecimento, sem perder a capacidade de conhecer. Que venham amanhãs e que em todas as manhãs me levante para a vida como quem nasce com o sol.

Amealhei, ao longo desse pequeno tempo, o afeto de pessoas para a vida toda; gente que sabe cultivar flores, independente de espinhos e pedregulhos; pessoas por quem tenho apreço e devoção. Como costumo dizer: no caminho de volta para casa procuro deixar mais flores que espinhos. Deu certo então, e todo dia aprendo, com cada qual que me escolheu para partilhar da estrada, uma canção nova, uma letra desconhecida, um acorde. Assim, tudo vira poesia. Costumo parabenizar os amigos em aniversário assim: ‘Vida longa, que a estrada seja de poesia e a nova idade reserve paz’. Na minha vez, conto com os amigos para tanto, companheiros de evolução, almas ímpares num mundo tão atrofiado por egoísmo.

Cheguei por aqui em 1970, filho de lavradores dignos. Em plena ditadura militar, mas o ano era o do ‘tri’ e, segundo dizem os contadores, da melhor seleção. Vida de fazenda sabe como é: fruta no pé, cafezal em flor, queijo, pão caseiro e manteiga de garrafa na mesa, moringa e roça, fogão de lenha com panela preta, pilão no terreiro, moinho no alpendre, batedor de roupas e muito anil, grama pra quarar e comadre de papo com cachimbo penso na boca. Cenário perfeito pra se nascer. Depois é que veio missa, novena e terços, baile na casa de dona Terezinha, jogo no campo de fazenda contra fazenda, e eu... como criança espoleta, escondia o cachimbo da comadre, corria da vara de amora da mãe, mas também tinha obrigação com os bichos, levar marmita na roça, buscar leite na mangueira, olhar o caçula... E de tarde era a festa, ‘trim’ no cabelo com mamãe penteando e puxando a orelha pra segurar a cabeça como se essa fosse fugir e o caminho era da casa da benzedeira da colônia – dona Cândida – Ah! se a onomatopeia me ajudasse a dar som para aquele chiado que só as benzedeiras entendem; um dialeto salpicado com ramo de arruda e abençoado na água com pedra de carvão! Eita, que até hoje me dá água na boca aquele gostinho da água benta e abençoada. Desde pequeno era vigiado pra não colocar brasa na boca... digamos que tinha uma atração pelo carvão.

No entardecer dessas palavras só posso ser feliz por ter vindo de pais tão nobres e honrados, heróis incansáveis na diária tarefa de nos impulsionar no amor e compreensão. Sim, tenho mais do que pedi: pais perfeitos, uma família maravilhosa, sobrinhos em castelos; para alguém sem filhos... São Príncipes e Princesas; casado com uma pessoa linda, de caráter ilibado, alguém com quem aprendo todos os dias que continuar é preciso, alguém que me tornou um Ser melhor em todos esses quase vinte anos, com quem entendi que podia ir muito além do que supunha, que me encantou com as palavras me despertando a poesia, meu primeiro leitor desde o primeiro poema, passando por todos os outros que vieram assim que acabavam de ser escritos, meu crítico literário pessoal, incentivador e aconselhador. Me contagiou com gosto por MPB, ah... e como foi bom ter esse contato, cresci tanto desde então! Tem coisa melhor?... Livros, bom papo, poesia, música, enfim, inteligência sempre foi, para mim, um “pega rapaz”. Ao meu Carlos um agradecimento é pouco, penso em dar a ele algumas vidas das que puder vir a viver.

Ainda, como se mais precisasse, vieram amigos. E ao falar de amigos só digo que tive sorte, verdadeiros irmãos, amizades sem culpas ou desculpas, sem meios ou por onde, sem pretextos ou contextos, só textos... sem cobranças e ameaças, perfeitos como coisa de alma. É assim com os queridos, uma ligação sublimada e que não deixa lugar para recursos já que nunca há julgamentos, assim são os amigos, os meus amigos, raros e caros.

Em São Paulo, desde o fim de 1979, descobri a vida da cidade e de como tinha posses o menino da fazenda sem o conhecimento delas. Com 12 anos já era ajudante de jornaleiro, depois de sapateiro no ofício de colar solados de tamancos, uns trocos pra feira, vida “marvada”. Mas como nada é totalmente ruim vieram os personagens do rádio povoando a imaginação. Sim, rádio – ‘turma da maré mansa’ era o programa preferido; a primeira televisão só aos 21 quando fui morar só.

Nesses 45 anos foram 29 mudanças – só com Carlinhos foram 15 em 19 anos. Endereços cheios de histórias, onde deixei também os meus rabiscos, o que me rendeu o título de cigano. ...E não duvidem de que a 30ª já esteja sendo preparada. Vida intensa meus amados... Sou um convicto incomodado, não costumo fincar raízes já que árvore não sou; apesar de ser perfeccionista e metódico, não gosto muito de rotina. Profissionalmente, então, foram inúmeros postos e apostas: de hospital a banco, de contínuo a encarregado, comerciante. Enfim e por fim acabei num curso de cabeleireiro, fui como para terapia de uma depressão e da síndrome de pânico. Acabei gostando, até que um problema de coluna apitou me tirando da ativa.

Pensava ter me encontrado, mas como nada é por acaso, essa intercorrência me levou para outros ventos e nesses novos que sopraram eu descobri o Reiki e aí tudo mudou. De 2012 para cá realmente tenho vivido um novo tempo, dentro do meu Ser, do que é meu território sagrado, o único templo que reconheço é o sagrado de cada território humano, onde o Outro é meu mestre e esta nova energia todo dia me transforma. A visão do todo e de sua parte em mim, assim como a minha nele, tem feito toda a diferença nos meus dias.

Nesse apanhado descubro muito que comemorar: os encontros e até os desencontros, os casos e acasos, as chegadas e partidas, os ganhos e também as perdas, porque nada chega sem sentido e nem se vai sem o dever cumprido. O que é nosso perdura e o que vai embora talvez nunca nosso tenha sido. Na vida luto cada dia por mais verdade e o que seja fruto dela. Não posso reclamar, visto que as facilidades da vida nos ensinam pouco, mas as dificuldades... Essas têm pós, mestrado e doutorado.

Quanto às perdas, deve-se mencionar o que eliminamos... aí é bom, há dois anos estava com quase 100 quilos e consegui, com uma nova postura frente ao prato, somado com outras novas posturas frente ao corpo, eliminar mais de 24 quilos. É uma baita comemoração diária à vida desde então, fiz as pazes com a autoestima e descobri que posso quando quero!

[Isso está quase uma autobiografia e era só um agradecimento de aniversário, bom, bastava dizer que era um homem feliz, mas como dizem que felicidade não se explica resolvi contrariar.]

Também vale dizer ainda que há pouco mais de 5 anos conheci o mar (tardiamente), indizível o sentimento que me assomou e desde então, ouço o barulho das ondas a me chamar, envelhecer ao seu som sei que vou e morrer de amor é promessa junto ao mar.

Tenho encontrado também na poesia um apoio, algo que apareceu em 2004, criou corpo em 2005 e foi parar na rede feito gente grande em 2010, tímida que só! Ainda me lembro de comemorar os primeiros 100 poemas blogados; 5 anos depois são quase 1000! Fui publicado na Romênia, houve exposição em Londres na Semana Internacional de Poesia, livro publicado na Bahia junto com outros poetas e, enfim, não vou ficar aqui discorrendo pelo currículo porque não é o caso. Modéstia à parte, a lista dos eventos está em pleno crescimento. O interessante, no entanto, é dizer que para alguns isso pode ser pouco, mas para o menino da Fazenda Sinhazinha lá de Centenário do Sul, Paraná... É muito, tem horas que penso que aquela lua gigante do pasto me transportou como se fosse um balão. Eu ainda a reconheço quando a vejo daqui e só peço que se ela pode mesmo transportar o menino que ainda vive aqui dentro, que não me deixe para trás, afinal, a viagem tem que continuar.

Se ainda posso querer dizer algo mais, deixo por conta da gratidão: devo tudo aos meus pais amados pela vida rica que me doaram, ao meu marido e amigo Carlos meu eterno compartilhar de mãos juntas, obrigado por todos os caminhos que vencemos e nos que virão continue contando com meu amor, aos amigos que sempre apoiaram me oferecendo abraços, saibam dos meus braços largos à disposição, agora com mais um risquinho nessa reta de existência.

Ao Universo o meu coração disposto ao aprendizado do amor Universal e que a vida seja uma prática de suas leis.

Namastê

Casciano Lopes
Outubro-2015

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