29.1.24

O grande encontro

Sou eu, a busca por mim que me insere todo dia na jornada e que me investe de curiosidade, me tornando capaz mais do que suponho, que move meus passos e torna meus braços aptos, apesar das noites que teimam em esconder os dias.

Casciano Lopes

Quimera

É solitário o caminho e, no trajeto, vez ou outra, encontraremos burburinhos e aglomerações que passam... porque nos nossos desertos nos tornamos inóspitos e, nas miragens de água, nos enxergamos potentes.
Lá no oásis final, no grande portal, o que não será alucinação foi o tempo gasto com o caminho; seco ou não, abastado ou diminuído, mas sozinho... Será verdade o passo, o traço feito, o laço dado no cantil em volta da cintura, que não perdeu a sede quando não foi delírio.

Casciano Lopes

Todos temos

A sombra que também é minha,
fica contida entre a dúvida e a certeza,
me provocando desejos que nem sei se são meus.

Casciano Lopes

Nota de falecimento

Morre pelo caminho...
A pele todos os dias
A paisagem que corre
A vontade que muda
A flor que cumpriu ser
A essência do perfume
A promessa da boca
A palavra quando emudece
... Morrem
Pessoas vivas e mortas, despedidas todos os dias, partidas de dor, da dor, de alegrias...
Partida é morte todo dia. Pequenas e grandes juras também partem, também morrem, o nascimento é coisa que morre, enfim, está tudo bem, desde que morra em mim a exigência de eternidade aqui, no mundo da perenidade; morremos todos de alguma forma, todos os dias.

Casciano Lopes

A cabeça ajuda

A agonia não tira você do buraco, ao contrário,
ela aprofunda a cova e te sepulta vivo num processo claustrofóbico.
O segredo é cuidar do pensamento em superfície,
mas com a pá nas mãos, e ao menor sinal de aterramento, cavar.

Casciano Lopes

Cuidado descuidado em silêncios resmungões

O agressor da rua não me conhece, não viu meu sorriso e nem riu da minha cena, não decorou meu texto, não sambou o meu enredo, não desmontou o palco de nenhum dos meus espetáculos, não montou a lona do picadeiro, não pintou meus olhos quando precisaram engolir o choro e, na avenida, quando o salto quebrou, nem de longe viu.
E talvez, no grande circo, por tudo isso, a face fica borrada é dentro da coxia, entre os pares, perto dos corações selvagens, que deveriam conhecer de harmonia pra que a concentração, antes do tempo, não se torne dispersão. ...e talvez a graça não precisasse sentar pra chorar.

Casciano Lopes


27.1.24

Entre dois pontos

Quando passam os dias fazendo barulho em minhas janelas, só penso que, como um trem, haverá uma estação de desembarque, e eu, passageiro que sou, viajo tranquilo então, sabendo que lá haverá uma plataforma com seus pombos e guardas, pessoas trocando apertos de mãos... Sei da faixa amarela, mas também sei dos trilhos que trazem pra perto o que precisa ficar e levam o que preciso deixar ir...
Tem algo musical quando vagões tocam um 'si' nas chegadas e partidas, quando já em mim caído, me rendo ao destino.

Casciano Lopes

Guardião

Sou um privilegiado
e não há ocasião
que me arranque o que herdei do tempo,
não por merecimento,
mas por cabimento
nessa experiência humana.

Casciano Lopes

Vejo um mundo

Sou um devoto do olhar que me foi permitido, não deste adoecido, e sim, do que enxerga por entre as frestas, do que consegue entre sacolejos, equilibrar o retrato do que importa, deste que apesar dos terremotos e sem a arquitetura graduada, consegue reerguer a cidade e colocar bancos na praça, pra neles se sentar e contemplar o vento que sopra a sombra, fazendo clarear as calçadas com seus passarinhos.

Casciano Lopes

Em tempo

Sobretudo saber que o tempo não é coisa de se contar em horas ou dias, ele gosta mesmo é de ser dito sem relógio pra demorar passar e com a pele arrepiada de quem conta, sem pressa, o que fez dele.

Casciano Lopes

Amanhã dependerá

No ano passado, ontem, na semana passada, ontem, no mês passado, ontem, passado...
Não posso viver lá e nem querer que aquele sol entre pela vidraça e perfure de luz a cadeira da mesa da sala, banhando de dourado a cena com as pessoas sentadas nela... cena.
O ouvido não pode se perder caçando as risadas soltas entre juras e promessas de 'para sempre'.
A boca não pode viver cantando aquela canção sob a pena de esquecer o que nem aprendeu das novas letras e os dedos desconhecidos da melodia não devem sofrer de câimbras por exaustão da busca de nota.
As pernas que precisam de destino e comandos e que não possuem olhos, precisam deles pra seguirem porque antigos palcos já perderam caminhos e com eles se foram... a bilheteria, o sapateado dos corredores, os aplausos.
As mãos precisam de disposição pra tocarem novos personagens, principalmente os que aguardam dentro do hoje, a oportunidade de serem aplaudidos; onde não morre o sol e onde a plateia independe de delírios pra brilhar, onde a verdade dispensa a garantia de sucesso porque entende que o que valerá no final, não serão apenas as salas cheias, será também o monólogo bem dito que ignorou a euforia e seus gritos...
Porque é fácil confundir a insanidade das palavras bêbadas com a coerência de um texto que a vida escreve em tempo real.

Casciano Lopes


Menino pequeno em mundo grande

Tudo era grande... a fazenda e sua gente, o pasto e seu boi 'Lorinho', a casa e seu rádio de parede, a novena e seu terço, o baile e sua sala, a cozinha e seu fogão de lenha, o forno e seu pão, o terreiro e sua paineira, a estrada e seu trator, o avô e sua charrete, a comadre e seu cachimbo, o moinho e seu alpendre, a benzedeira e seu carvão... o milho, a plantação, o poleiro, o rastelo, o canivete, o fumo de rolo, a camisa curta e seu bolso esquerdo de guardar o mundo, começando por amoras e seus pés grandes, de guardar menino em sua varinha sem condão.

Casciano Lopes

25.1.24

Desenho também gasta

Quando menino, no tempo em que minha caixa de lápis de cor era pequena e de seis cores, o mundo que eu pintava cabia mais cores e com poucos traços, as cidades eram erguidas e nelas não haviam ruas que não me coubesse.

Casciano Lopes

Pequenos quadrados

Quando tento encerar meu chão, buscando o brilho dos tablados... Não é pra impressionar os que eventualmente passam pra conferir o zelo; é pra que eu deslize com mais facilidade por meus cômodos apertados e consiga refletir em meus assoalhos, toda a circunferência da vida, que como o mundo, é grande, mas que precisa caber em mim, pequeno.

Casciano Lopes

Noturnamente

A ousadia da noite que chega calada, faz madrugar as dores e apaga as paredes do corpo pra que eu durma. Não sei se por canseira ou coisa assim, permito o sono e ouso sonhar enquanto durmo. Então amanheço... O que também é ousado.

Casciano Lopes

23.1.24

Adapte-se

A vulnerabilidade da vida nasce antes dela,
no útero, e permanece até a morte,
quando até o forte se deita e se cala pra sempre.

Casciano Lopes

Labirinto

Vai muito além da alegria... o riso.
Vai muito além da tristeza... o choro.
Ambos nos levam pro coma...
e nos deixam lá pra achar a saída.

Casciano Lopes

Tudo na palma da mão

Uma sala, um escritório inteiro; TV, câmera fotográfica, filmadora, PC, impressora, álbuns, vitrola, calculadora, máquina de escrever, telefone, fax, cd, dvd, disquete, LP, bússola, telex, lanterna, gravador, calendário, rádio, agenda, relógio, guia de ruas, mapas, despertador, enciclopédia, caneta, papel, arquivo, livros, jornais, revistas, pastas, selos e carteiros no portão... Bancos e seus sistemas, empresas e reuniões... A lista seria imensa!
O mais perigoso e desastroso é o silenciamento sem cabimento, mas que também cabe na palma da mão... Num aparelho de poucos centímetros, encurta-se quilômetros e também deixa distante o abraço, cada vez mais distante o afago, o olhar, o cheiro, o beijo do encontro, o lenço emprestado num gesto delicado, o colo do acolhimento... A audição fica comprometida, a leitura fica tendenciosa e a escrita que toma o lugar da fala, tem pressa e vira especialista de conhecimento nenhum.
Na palma da mão, o equívoco graduado, a valorização da ignorância e a validação da intolerância.
O poder do cancelamento, do bloqueio, do grito em caixa alta, da razão unilateral colocada acima do bem comum, a surdez que adoece a língua, que esquece das palavras gentis porque não as usa e por não usá-las, morre lentamente em curtidas e compartilhamentos a missão da humanidade de conviver e de praticar afeto e respeito.
Tem tudo na palma da mão, menos o aperto de mãos.

Casciano Lopes

Na barriga da noite

Djavan inicia uma canção dizendo: "cuida do pé de milho, que demora na semente".
E eu quero dizer da demora adormecida, aquela que descansa e espera em gestação.
Algo que se quer muito, precisa ser formado antes dentro da gente. Tudo nessa vida tem o tempo da semente, e o cuidado faz brotar o nosso pé de sombra, nosso pedaço de sonho de fazer caber nossa demora.

Casciano Lopes

21.1.24

Amanhãs livres

Quando ocorrem compressões dentro da gente; de toda ordem: veias e artérias, vasos e ligamentos, juntas e cartilagens, músculos e vértebras, ossos, tendões ou nervos; é quando a gente entende que é soltando que se liberta o fluxo da vida e não prendendo do lado de dentro... As mágoas, os arrependimentos, as angústias e decepções... Como disse Viviane Mosé em 'Poemas presos': "Palavra boa é palavra líquida/Pessoas adoecem de palavra presa.

Casciano Lopes


Silêncio do perfume

Quando eu fico cansado de tentar explicar a flor,
que não precisa de motivo, eu só acolho o jardim
que tem suas razões em falas sem palavras,
pra aprender o descanso que só a flor tem.

Casciano Lopes

Madrugada levantada em mim

Sei que de tudo, ficou a paz deitada no meu travesseiro, quando levantei e fiz um café pra conversarmos; eu e a calma... Porque ela também precisa aprender a ficar, afinal, a pressa vive na soleira da porta, se fingindo de ativa, mas sei que é agonia quando me grita, quase acordando quem descansa.

Casciano Lopes

Razão das horas

Cuide pra que não falte motivo pra acordar,
pra dormir tem motivo todo dia.

Casciano Lopes


19.1.24

Os fins justificam os meios?

Somos inteiros; início, meio e em processo de finalização.
Somos o que falamos ontem e o que falaremos hoje.
Somos o que fizemos na década passada e o que faremos na próxima... se houver.
Somos a birra da infância e a intolerância da velhice.
Somos cheios de passado que não se apaga, de presente feito de tempo acontecendo e de ambição por um futuro sem promessa de ser tempo.
Somos...
Ontem e hoje
Realidade e pose
Claro e escuro
Casto e impuro
Noite e dia
Poesia e lata vazia
Carroça e jumento
Paz e tormento.
Um conjunto indivisível de textos, contextos e pretextos com silêncios no meio, uma indizível obra que a gente passa a vida tentando vender como um sucesso de edição, sem saber que a morte pede conta, não dos volumes vendidos e sim, do que fizemos daqueles encalhados em nossas prateleiras.
Somos aquela dissertação que fica verdadeira na boca do espelho que nos viu e que talvez destoe da nossa palavra que viu o espelho.
Justifica?

Casciano Lopes

Posso!

Por onde andam nossas aptidões, nossas vontades e idas?
Sabe? ' Deu medo... vai assim mesmo'.
Onde?
Será que se perdeu no impermanente 'sim' ou se esbarrou na imponderável frieza do 'não'?
São tantas vindas, medos... tantas chegadas, medos... pra tão poucas saídas! Coragem...
Confunde-se facilmente com a falta dela... coragem.
Mas da mesma forma que o enfado facilmente leva os apelidos de canseira ou preguiça, a covardia se impõe pra vender medo e há quem compre, perdendo a valentia de ser capaz.

Casciano Lopes

Doutorando querendo diploma

Vivemos tempos de doutores da palavra... em que nossas falas estão sempre distantes das teorias dos informados, em que não encontramos audição calada e que nossa opinião é só um equívoco do pensamento.
Tempos em que a oratória das convicções roubou a possibildade das hipóteses e que o outro é apenas um incômodo porque diverge das certezas, uma ameaça.
Tempos em que as pessoas apresentam argumentos como se estivessem numa avaliação de 'TCC', apresentando suas teses pra uma banca avaliadora de curso, cheias de frases prontas e referências bibliográficas, autoras de normas que nada tem de compreensão do caminho que o ouvinte fez ou faz, porque estão ocupados demais na expressão dos seus interesses, colocados em rebuscados discursos que descartam tudo que não seja aplauso.

Casciano Lopes

Ainda que chova lágrima

Ainda que chova,
quero manter secos os meus calçados,
pra que os pés deixem mais poeira
que lama nas demandas dos dias.

Casciano Lopes


Lembrete

Pra maioria das pessoas são só coisas, pra mim são as vírgulas da minha história, pausas de que precisei pra respirar, aí coloco tudo à vista; nas paredes, nas mesinhas, no canto da sala, dentro de mim; entre meus guardados arrumadinhos e bagunçados, pra quando eu precisar lembrar de parar.

Casciano Lopes


18.1.24

Afetuoso

Os afetos
contam mais que a rosa afetada de sorrisos
quando num gesto vira presente.

Casciano Lopes

Atrapalhando o trânsito?

Viu como compensa a escolha do bem
no lado da rua da vida?
Tanto faz se ele estiver na calçada,
no acostamento
ou na pista correndo perigo.

Casciano Lopes

Considere o não saber

Sagrado
é tudo quanto me leva pra longe
do que penso ser.

Casciano Lopes


Eu, canteiro

São os verões maturando minhas sombras, são os outonos derriçando meus galhos, são os invernos brigando com meu caule e as primaveras me dizendo flores e espinhos que me fazem lavrador das minhas terras... estações.
À noitinha, quando minhas mãos em calos deslizam por meu rosto e alcançam a boca que calo, é quando trocamos silêncios, ficamos ali calados esperando a poda.

Casciano Lopes

16.1.24

Vou ver, revolver

Quando a árvore vizinha de nossa rua é afetada pelo sopro do ar, venta em nós os seus conselhos, nos afetando com seus verdes palpites, e nossa mania de raiz, se desprega da terra, procurando leveza que nos leve pra não pesar ao tempo, nossos galhos de contar o que se passou embaixo de nossas copas.

Casciano Lopes


Orientado

Que nossa bússola interior conheça caminhos
mais que o norte de nossas certezas.

Casciano Lopes

O interno cabimento

Pode ser um compartimento pequeno, pode ser apertadinho, pode ter paredes miúdas... Porque o amor se acomoda e sempre encontra formas de se ajeitar, ele se espraia. Pede-se apenas que as janelas sejam irrestritas pra luz do sol, que se abram pra nascente ou poente iluminação, porque se tem coisa que amplia o espaço, é a luz do amor e talvez por isso, fizeram parceria; o amor, o corpo, a casa e o mundo... Casas de morar.

Casciano Lopes


Entre mundos

Abrigar a luz,
é muito mais que fazer o céu caber numa cidade,
é todo dia fazer-se caber entre um e outro.

Casciano Lopes


15.1.24

Nada

Viver me causa estado de mar
Naufrágios provocam em mim mares
Corais incitam mares em mim
Mergulhadores e banhistas
... e eu tão mar me sinto.

Casciano Lopes

É preciso dizer

O importante é continuar na estrada da expansão, é saber que não estar ou não se sentir só, vai muito além das presenças; pede a guarda de meus pensamentos, a coragem da minha vocação, a liberdade da minha expressão e das minhas convicções colocadas em prática cotidianamente... Procurando mais acertar que errar, e se errar, que não seja planejado. Que jamais a maldade seja algo elaborado, e que jamais eu cometa o engano de achar que o sofrimento elimina a felicidade ou vice-versa. Sou múltiplo, minhas versões convivem, meus opostos não se negam e meus princípios me impedem de viver o teatro dos contentes. Gosto do mundo real, da nudez das ideias, das coisas como são, prefiro a vida sem anestesia; dor, assim como alegria, dá e passa, só preciso senti-las todas, misturadas numa realidade e saber que se bem compreendidas, trazem a capacidade bem estacada na linha do horizonte de olhar.
Sou minha melhor presença e preciso gostar da convivência, a meta é nunca me envergonhar da pessoa em construção, daquela que todo dia se descobre em obra e como dizem: "só suporta a obra quem visualiza a casa pronta".

Casciano Lopes

Sou de água

Vi o mar de São Vicente ainda garoto, depois de 30 anos vi o de Ilha Comprida repetidamente e depois, aos 48 de idade vi o de Fortaleza, isso me foi suficiente... pra entender o mar que me navegava, pra compreender as ilhas que me habitavam.
E porque me descobri oceano e longe dele me desidrato, é que aprendi a admirar o sol que nele se deita toda tarde sem se apagar, pra toda manhã em mim se levantar.
E eu insuficiente, desperto nele... feito de mar.

Casciano Lopes


Eco à deriva

Aos viventes,
ainda que náufragos,
o oceano pede o grito
pra calar suas tempestades.

Casciano Lopes

Enquanto dure o cuidado

A mesma onda que mata quem não sabe nadar, faz delirar o surfista experiente. A mesma flor que compõe o buquê dos apaixonados, perfuma o corpo estático que se despede. A mesma lágrima da despedida que rasga a face, reaparece contente nas chegadas costurando a saudade.
É só a dor misturada no mesmo arranjo da cura; os espinhos não tiram a sua beleza, a falta do olhar apaixonado sim... o que mata as flores não são as dores, é a indelicadeza dos amores.

Casciano Lopes


Um Chicó

Ariano Suassuna
Em o Auto da Compadecida
Personagem Chicó
"Não sei, só sei que foi assim"

O quanto não sei é o que me leva na busca, assim, não tenho medo; de voltar, mudar, desistir, tentar, arriscar...
Não sei mesmo!
Só quero descobrir, insisto.

Casciano Lopes


Cartão postal

As distâncias não são encurtadas numa locomoção, numa grande viagem pra um aperto de mão ou numa ponte que liga dois lados da mesma estação.
A proximidade está legitimada nos acordos dos gestos gentis, está na franqueza da palavra que de tão bem dita parece cantada...
E aí a lonjura se afasta, porque os pactos superam vistos de permanência e estabelecem vínculos além das milhas e da embarcação.
A distância só existe se a lealdade não tiver compromisso e perder a quilometragem produzindo mais trilhos que trens, mais portos que barcos.

Casciano Lopes

12.1.24

Não cabe na fotografia

Em cada bomba lançada e em cada paisagem amedrontada, a vida perde não só o seu retrato de milagre, ela perde a divindade retratada na humanidade, ela perde o direito de olhar pra si sem vergonha.
Ela perde a imagem santa, a santidade e o altar do mundo. Ela perde...

Casciano Lopes


Andarilho intuitivo

Nasce da observação;
a ação,
a direção
e a vibração
que ultrapassa a intuição.

Casciano Lopes

11.1.24

Cartografia infanta

Ainda tenho em mim os riscados da infância,
ainda possuo os desenhos que inventei
sem saber que elaboravam as cidades
que envelheceriam comigo.

Casciano Lopes

O que arde tem nome... O meu

Temos todos guardados sob a nervura dos tecidos, incandescentes erupções com avisos de perigo, prontas pra entrarem em atividade e por em estado de lavação toda a montanha gelada de nossas afirmações polidas, causando temperaturas elevadas em nossos veios de diplomacia. Temos todos fervuras, bravos ímpetos e opostos da candura que agitam o solo só porque também somos terra, sujeitos e interpelados por intempéries, gélidos picos prestes a derreter sem brandura...
Todos temos...
Ilusão desiludida, conversão atrevida, vontade inibida e desvio de rota; sim, aqueles instantes em que tentamos convencer a subida de que ela é descida e que quando, de fato, vira descida, fugimos dela como refugiados, porque nosso vulcão em atividade faz fogo do que era passeio...
Somos vindas e idas, algo retocado de calma e pressa, objeto da ação ao mesmo tempo em que sujeito, oração, verbo e conjugação, um amontoado de tempos, excessos e faltas...
Somos um altar ecumênico, cheio de santaria, fé e incredulidade, milagre e promessa... Idolatria.
Voto descumprido, garganta seca se fingindo de molhada e boca de saliva desejosa disfarçando cisterna abastecida.
Somos lava, magma procurando veias que suportem nosso calor, que desmintam nosso amontoado de palavras vãs.

Casciano Lopes

Espera de ponteiros

Toda guinada requer equilíbrio, a disciplina de se alinhar.
Até pra romper com um castigo (como se diz no dicionário: um dos significados da palavra 'guinada: salto que o cavalo dá para um lado afim de se livrar do castigo do cavaleiro'), é preciso uma postura enérgica, uma atitude que nos coloque na ação do novo rumo.
Mas não basta virar-se pra direção, é necessário um olhar posto em pé, colocado sobre o medo e sob a coragem de mudar.
PS... Não basta uma contagem regressiva como a da chegada de um novo ano, é imprescindível um relógio atento em pulso firme.

Casciano Lopes

10.1.24

Riscos e evidências

É extraordinário olhar pro chão e saber devolver a ele toda a poeira do corpo, receber a chuva e permitir que ela lave o percurso tatuado na pele, levando pras valetas as pegadas estampadas nos vincos...
É saber que os sulcos de nossa existência precisam contar os mapas e carecem de uma terra limpa, pra caber os pés de descobertas.

Casciano Lopes


Do que me causa

Tudo o que requer noites
também provoca pirilampos.

Casciano Lopes


9.1.24

A jura

As maiores promessas ocorrem fora de nós,
margeiam nossos sentidos sem ferir a expectativa.

Casciano Lopes


Manhas, manhãs e intervalos

Lá onde mora a realidade, a robusta vontade e a duração da palavra; é onde pretendo construir eternidades, apesar de saber da perenidade dos meus anseios.

Casciano Lopes


7.1.24

À mesa

Quando junto na cozinha minhas experiências, vivências e temperos da idade, não quero provocar apenas o apetite do mundo; quero sua fome de amor no meu prato contada e na minha história saciada.

Casciano Lopes


Fisiocardia

O desafio não é sangrar todo dia como escreveu José Saramago, é sendo apenas um músculo, pulsar a dor de ser, disse o coração.

Casciano Lopes


Quebre o vidro

Em caso de angústia...
Assopre.

Casciano Lopes
Dente de leão

Moradia popular

A tristeza não é um lugar de estar.
Desconfio que é galho seco, sem flores, folhas e frutos...
A questão é que ocorre em mim passarinhos, cores e então...
felicidade é casa de morar, tristeza não.

Casciano Lopes


A tal fala e o Tao não dito

O soluço deixou espremido entre o espírito e a carne um ai... o gemido escondido partiu ao meio uma lágrima... e eu caminhei em seco chão, olhando os rios que nasceram do meu calado silêncio... um modo de perceber que o descabido grito contido foi capaz de sozinho fazer oração; que eu ouvi, acolhi e atendi, quando andei por entre o mudo choro, operando a graça do riso em um pedido de rio comprimido.

Casciano Lopes


Ardente

Não foi o calor que feriu o deserto,
foi a paixão da sua terra pelo sol,
matando a água de esquecimento.

Casciano Lopes


Depressa

Se esperar for o segredo da calma,
qual será o mistério da pressa
que não tem tempo pra me contar?

Casciano Lopes


Vão livre

Talvez o meu mundo seja retratado nas janelas,
talvez os passeios ocorram gratuitamente a partir da debruçada contemplação,
talvez a distância seja fictícia e encurtada quando dependuro o meu olhar nas vidraças.

Casciano Lopes


5.1.24

O complexo

Ainda me perco em minhas construções, não raras vezes me encontro nos becos e ruelas perguntando por mim, tenho noites de busca do caminho de casa, há dias inteiros em que as ladeiras da minha cidade brincam de endereço certo; e eu que me descubro um lugar no mapa, parte da geografia e caçador dela, só quero uma porta que me encontre, dentre tantas que me acenam verdades e mentiras.

Casciano Lopes


4.1.24

Atuação do ato

Na espera de um movimento, o violino aguarda e guarda o som inteiro de uma sala de música...
Como numa floresta que os animais despertam no primeiro panda que ousa quebrar um galho, como nos nadadores que atingem suas piscinas num tiro de largada, como numa cachoeira que se precipita numa primeira gota d'água que desafia a queda, como num carro que invade a faixa quando sinaliza passagem o sinaleiro, como nos aplausos que rompem o silêncio dos panos de um espetáculo, como num bebê que rasga a porta e grita a vida num gesto de parto...
Como na vida, que só acontece quando a gente quebra o lacre de emergência e produz o barulho da respiração, e é isso, a inspiração é que poderá dar conta dos gritos do mundo.

Casciano Lopes


Plano em pano

É necessário mais que balões pra tirar os pés do chão, é preciso do espaço aéreo chamado sonho e dos bons ventos que orientam a rota do voo livre de quem desperta.

Casciano Lopes


1.1.24

Primeiro fim de tarde

Primeiro fim de tarde de 2024...
Honro aos aprendizados que esta fisicalidade me proporcionou: as despedidas das partidas, os abraços das chegadas, as palavras que encontraram audição e as falas que não, os acolhimentos e negações, as mãos que levantaram e o chão que segurou o impacto dos empurrões da vida, a dor que assustou respeitando os limites e ao olhar que viu portas em paredes mortas...
Meu respeito aos passarinhos da cidade, que se levantaram cedo pra me darem conselhos quando me faltou o sono.
Minha admiração aos do meu clã, que sempre me convenceram com seus gestos, de que a vida é linda todo dia e que eu posso sim, me admirar no espelho que conta o que guardo debaixo da pele.
A beleza que hoje vejo, aprendi assim, com o belo do outro.

Casciano Lopes


Parceria de sonhadores

Construímos algo mais duro que a rocha, mais leve que a pena... Amor!
Caminhamos ainda, não porque seja mole a caminhada, mas porque o amor faz da tal 'caminhadura', uma possibilidade de sonhar com a superação dos desafios.
Taí, o amor é possível quando ele permite sonhos, e sonhar foi o que mais nos trouxe até aqui, juntos, fazendo viável a nossa viagem pelo planeta nessa vida.
Você me ajudou a sonhar, e só assim, fomos capazes de destinos calmos a partir de origens tão caóticas! Temos o caos e tivemos tantos 'improváveis' terrenos, mas temos a ponte que ensinou travessia.
O sonho é capaz disso, e você amor, é grande porque sonha e eu te sonho todos os dias, e porque sonhamos, nos amamos.
... Atravessamos.

Casciano Lopes

Caso não desista

Caso você passe...
Vontade ou satisfação
Fome ou saciedade
Dúvidas na mão ou dor na contramão
Insista
Caso passe...
Ausência e presença
na mesma existência
Passe
Persista
Certezas infringem as setas,
cruzam as faixas
Só pra que, caso você passe,
não seja inválido o trânsito.

Casciano Lopes