Cidade envergonhada

Tem momentos em que a nossa timidez diante da vida afeta as ruas, gerando uma palidez, um cinza se esgueirando pelos muros, quase sem coragem de se apresentar.

Casciano Lopes

E se....

Aquela tristeza apaziguada, aquela mágoa guardada entre a respiração e a calada madrugada, aquela febre sentida perto do medo e na ausência de qualquer intuição, aquele frio tão fora de estação e tão dentro do meu corpo de sentir.

Talvez não tivesse sobrevivido...
Não fossem os campos visitados, não fossem os perfumes que brotaram pra que eu aprendesse nascer, não fossem as curas que me curaram os espantos...
Talvez não encontrasse motivo e já partido, tivesse morrido sem ao menos me conhecer.
Talvez...

Casciano Lopes

Retrato falado

Eu te conheço, eu sei das tuas voltas na roda gigante do parque, eu sei daquele sorriso disfarçado de lábio engraçado... Eu te conheço.
Eu estava lá quando a lona foi levada e o picadeiro deixado com os aplausos na espera, vi quando você borrou a face e mesmo assim, fez da graça um rosto possível
E eu... te conheci.

Casciano Lopes

Descrer

O que nos detém

Não são as grades

É não acreditarmos nas asas.

Casciano Lopes

Um Xamã e eu

Sou como árvore em beira de ribeirão, somos todos.

Assistimos a viagem do rio e viajamos com ele, sem sair do lugar, fincados na existência conhecemos o que passa por nós e passamos por tantos lugares e pessoas que abençoam nossas raizes, que estabelecem descansos em nossas folhas ou podas em nossos galhos.

Somos fixados na paisagem e enquanto posamos pra fotografia dos olhos observadores; crescemos, perdemos folhas, ganhamos reclusão feita de frio, brotamos de novo em flores e exuberância e enchemos de sombra as margens da vida.

Estações... Tempo... Via... Navegação em grandes águas.

Assim como a água, a árvore não discute fluxo e nem vista, só sabe passar uma pela outra.

Como eu, como nós, como a vida que corre pro grande mar, a árvore plantada sem aparentemente sair do lugar, precisa saber, que tudo que chega ao destino, conta do que viu passar.

Casciano Lopes

Orador de mim

Não falei de todas as dores, não disse todo o grito, não chorei todos os soluços...

De modo que nas palavras do silêncio, pude encontrar uma forma de sorrir cada uma delas, cada letra engasgada nos arames do meu sentimento analfabeto.
E ainda assim, colecionei dicionários sem vocalizar vocábulos, só pra que no tempo da formatura, eu não tivesse vergonha de mim.

Casciano Lopes

Via de ferro

E eu sou tão forte,

que sou capaz de chorar um trem quando constroem linhas férreas

os que amo e que precisam partir... Tão forte, que finjo horizonte

pra que a lágrima aprenda a sorrir só pra desistir de despedir.

Casciano Lopes

Todo excedente

Amo os exageros mais que a escassez, vivo das sobras mesmo possuindo as faltas e o volume das sensações está aumentado para contrapor o pouco que me acha sufuciente.

Acho extraordinário um passarinho pousado, que possuindo asas, se permite parar e contemplar o que não é céu.

Assim, tenho em mim as asas que sei e mesmo assim, faço meus galhos de observação da vida entre os pés fincados no excesso de vontade e os olhos robustos de voar sem sair do chão.
Só preciso dos extremos pra me dizer que posso.

Casciano Lopes

Uma palha que embale

Quando eu era criança sempre soube apreciar uma fogueira. Na roça ela servia até pra que as pessoas deixassem de ser apenas amigas e se tornassem comadres e compadres.

As pessoas faziam pactos e assumiam compromissos umas com as outras, e no intervalo... comiam milho assado, esquentavam o corpo, trocavam anéis, cachimbavam prosa e se prometiam colheitas, confiando no tempo bom.

Sabem o que faz saudoso o caminho em torno daquele fogo?

- É que hoje as pessoas continuam confiando no tempo, mas não umas nas outras...

Faltam os laços em torno de coisa pouca, uma brasa que acenda o brilho das juras humanas e uma conversa embalada sem pressa... Falta fiança, falta aliança.

Casciano Lopes

Do que sou capaz

Gosto de pendurar minhas receitas,

de expor em varais, minhas aptidões. Gosto.
Assim...

não me esqueço dos doces que faço

e sou lembrado de mexer o tacho,

pra não queimar a esperança que adoça tudo o que não cabe estendido.

Casciano Lopes

Vista de cima

Dentre tantos assentos pra descansar minha canseira e lugares pra esticar minha rede de parar, ainda escolho o discurso feito na vertical de minha envergadura e na prática da vontade de fazer valer a vista de tudo que os olhos podem ver quando sobrevoam...

Também é lugar de prazer, a utilidade posta acordada, entre a diferença de acomodação e comodismo.
Confortável é viver e muitas vezes, parar são pequenas mortes.

Casciano Lopes

O lápis e o risco

Se eu não acreditar nas retas,

não suportarei as curvas.

Casciano Lopes

Bebendo e bebido

Amanhã, quando eu levantar, quero me encontrar disposto para o preparo do chá, disponível ao seu perfume e, bem quentinhos, nós nos sentaremos em qualquer canto de flores para conversar sobre sabores.

Casciano Lopes

Interesse ensolarado

Às vezes preciso contornar, subir, procurar brechas, buscar frestas pra ver a luz.

Tem momentos em que foge o dia e preciso correr atrás do sol, não que a noite não seja necessária, ela só não pode se acomodar e perder a hora de ir embora.

Casciano Lopes

Erva daninha

Até a mais singela semente entende de florestas como quintais do mundo, menos o homem, que vê mundo apenas na sua ambição sem mente.

Casciano Lopes

Coisa de ver com a cabeça fora d'água

Gaivotas sobrevoam o mar, em céu azul de águas azuis, gaivotas voam o mar, as ondas se levantam pra ver o voo e quase voam.

Casciano Lopes

Paisagem árida

Não sei quando me tornei espinho, quando comecei a decorar desertos.

Não me recordo do dia em que secou em mim a vegetação.
Quando me vi, estava estacado no meio do caminho, feito um cacto envolvendo a passagem e envolvido por lembrança.

Casciano Lopes

Olhos sem aroma

Talvez a invisibilidade seja a forma mais visível de ferir.
... Disse a flor, dos que passeavam sem olfato pelo jardim.

Casciano Lopes

Humano

Eu sei que lá fora a crueldade anda tirando as chances de vida de muita gente, mas também sei que há os que andam devolvendo possibilidades de abraços aos que precisam de calor...
Prefiro crer na direção da cura, me juntar ao remédio que aplaca a dor e afasta os sintomas da frieza... sei que posso potencializar o efeito do amor.

Casciano Lopes

Juras na árvore

Ao amor rendem-se os galhos, que oferecem-se ao voo dos comprometidos para pousos e decolagens, vistos eventualmente servindo de pousadas, são elevados ao status de cúmplices, já que amores constroem neles ninhos, que abrigam e dão cobertura.

Casciano Lopes

Memorando de mim

Vou precisando cada vez menos, vou me bastando.

É um aprendizado.

Dura uma vida, a dura escada que me ensinaram a subir quando criança e que, ela mesma, agora me ensina a descer e querer dos seus degraus apenas o consentimento de sentar, e saber que descansar também é escalar alcances.
Se eu não entender que sou suficiente, começo a depender mais do que necessito e a necessidade é coisa que não pode se fixar no outro. A precisão tem que morar em mim e quando isso acontece, subo e desço sem autorização, porque me assino.

Casciano Lopes

Lado direito

A chuva que me põe do avesso e que encharca minhas convicções quando transborda minhas valas do saber....

É a mesma que estia e deixa limpo meus acervos para aprender.

Casciano Lopes

Em corredores e arredores

Também sou uma metrópole, com suas avenidas congestionadas, sua gente apressada e seus prédios ocupados de preocupações em vidraças e de madrugadas assombradas.

Mas... não deixo de ser vilinha calma, cidade pacata com casinhas pintadas de brincadeiras, bancos de praças sem assombro e relógios sem pressa de contarem o que ouvem nos portões baixos que não precisam guardar segredo.

Casciano Lopes

Mesmo que o olhar seja o meu

Ter assento livre,

muitas vezes está além de uma cadeira disponível,

é preciso um olhar disposto a liberar passagem.

Casciano Lopes

A 'envelhescência'

Nasce-se tenro, rasteiro e em broto.

Os plantios geram colheitas, desabrocham-se em fases... infância, pré-adolescência, adolescência, juventude e a maioridade das coisas, a complexidade dos assuntos e a perplexidade das temáticas da idade.
É caminhada em campo vasto, distâncias para serem percorridas em tempo curto; talvez devessem avisar os bebês para não terem tanta pressa de descer para o chão, mas plantados de ânsia, engatinhar vira primeiros passos de repente... Uma corrida.
Perde-se colo, a inocência e aquele soninho, que vira indolência na falta de hora da tarde adulta.
Envelhece-se...
Sem prévio aviso, encurta-se a vista junto com as pernas que já não pulam, a estrada é tão grande quanto a vontade de mastigar cada gosto que se deita nos pratos... Mas é a maturidade, onde nem sempre se pensa mais e fala menos, mas quando fala, é com conhecimento adquirido, aquele que obedece o calendário. A 'melhor idade', onde não se faz outra coisa, a não ser esperar.
Tem-se tudo da jovialidade, o apetite inclusive, só que sem os dentes... (Risos).

Porém, não se quer a morte. Não! Pretende-se a vida, afinal, há tanto pra rodar no mundo ainda, que mesmo se precisar de novo ensaiar passos, descobre-se um motivo bom pra envelhecer com anseio e rodopiar além da labirintite.

Casciano Lopes

Escape

Sempre será possível

cavar uma porta

onde houver parede.

Casciano Lopes

Amado gratuito

Não custa nada
Nenhuma paga
Nada em troca
Nenhuma, nada

Gostar de viver
Não por ser fácil
Querer por ser bom
Dom de ser

Amor, amar.

Casciano Lopes

Sou levado

Tudo o que me tornou quem sou,

merece a memória que tenho

e que carrega a saudade de onde venho,

fazendo de mim todo dia,

uma história carregada pra onde vou.

Casciano Lopes

Sou viva

Sou solo

Sou semente

Sou capacidade guardada

Feita de abundância

E também de seca

Sou funda, finda

Mas enquanto não

Sou terra capaz de durar.

Casciano Lopes

Precisado

Quando nasci,

entendi de colo e quando cresci,

continuei entendendo.

Casciano Lopes

Sem tranca

Há um tempo para abrir as janelas,

abrir os cadeados dos baús,

abrir as pétalas dos buquês.

Há um tempo para o coração,

para os portões da alma não mais se fecharem.
... E é esse tempo que me dá tapinhas nas costas e diz:
- Agora!

Casciano Lopes

Planta ação

Rever também é ver nascer o novo,

poder voltar também é seguir...

caminho novo.

Jardins precisam de opinião,

assim como nós, de decisão.

Casciano Lopes

Em primeira pessoa

O trem da vida, nos desembarca e embarca só...
entender isso, nos fará um passageiro consciente durante o compartilhamento da viagem no intervalo, o percurso tem horários lotados e madrugadas solitárias, mas em todo o tempo é transporte, apenas isso, veículo.

Casciano Lopes

Vasto

Não é só no topo que se faz vista,

embora a altura seja fundamental pros olhos,

as funduras falam das distâncias.

Casciano Lopes

De volta pra casa?

Também era casa e eu me senti longe de casa. Era como um fugitivo isolado.

Só e enjaulado convivi com o pânico de ser pequeno demais pras memórias grandes, fui assustado pelas certezas que mentiram e esbarrei com a loucura dentro da sala.

Precisei existir, subir além do medo pra gritar, a voz rouca falhou quando encostou nos ouvidos moucos e mesmo assim, me transportei com a mudança pesada.
Eram poucos os recursos do corpo e ali eu entendi, que a gente só lida com o termômetro quando a febre se aloja na pele e que pra retocar a temperatura, é preciso bem mais que pincéis de camarim, é preciso a dor.

Casciano Lopes

Conhecimento em combustão

Nada e nem ninguém passa impunemente pela vida...

Se até o capim serve ao gado,

também servirei de combustível para a queima da minha ignorância.

Casciano Lopes

Solados

Quando os sapatos estavam novinhos na vitrine da loja, eles nada sabiam de poeira, de saltos gastos, de acomodarem calos e de marcha calçando pés...
Vendidos, conheceram caminhos, e com eles, descobriram sua utilidade, e com ela, a impossibilidade de voltar para as prateleiras dos novos...
Alguns voltaram para os brechós, mas não sem história e outros tantos, se gastaram cumprindo a missão para que foram pagos...
Servirem aos pés.

Casciano Lopes

Paisagem da falta em bancos calados

Romantizamos as fases de uma árvore, que se refaz depois do outono das despedidas e do inverno de recolhimento nos ossos dos seus galhos, mas fazemos isso, descansando sob sua sombra de verão ou jurando amor com a chuva de suas pétalas na primavera...

É sempre tempo de visitarmos as suas raízes, pra falarmos do processo de dor, de suas perdas e de entendermos do frio, quando ficam sem juras seus corpos vazios.

Casciano Lopes

Aviso em palito

Aproveitem crianças...

O tempo das amoras que tingem o sorriso, as horas de pirulitos dependurados no céu da boca, as sombras produzidas pelas nuvens de algodão doce e os trovões disparados pelos chicletes...

Aproveitem, porque passa.

Chove mais tarde, nuvens e trovões no céu... Chove.

A criança permanecerá com o sorriso dentro do velho, e ele, terá bem mais que a tinta das amoras nos lábios.

Casciano Lopes

Em mim

De toda a saudade que tenho...
De pessoas e lugares,
saudade que tenho.
De fotografias amarelas e de pratos que nunca esfriaram,
saudade que tenho.
De canções divididas entre a poesia e a alegria, de sabores e cheiros em mim,
saudade que tenho.
A mais profunda é a de quem não fui, das minhas palavras sem som e dos meus ouvidos roucos, quando cantavam os que partiram de mim... A saudade que tenho.

Casciano Lopes

Entre paredes

Somos casas, e sempre moramos pequenos diante da largura do mundo e do comprimento de nossas vivências.
Habitamos aquém do que somos além, eis aí o desafio.

Casciano Lopes

Encantar-se

Não devo viver amuado pelos cantos,

é preciso cantar e os encantos

podem acontecer em qualquer canto da casa...

Só não podemos nos desencantar,

sem canto algum.

Casciano Lopes

O mundo em postura

Eu desfilo porque vejo passarela,

não porque sou um modelo,

mas porque não posso parar nos acostamentos da estrada.
A vida é muito mais que nascer,

é preciso todo dia estrelar,

entrar em cartaz e despertar os aplausos dentro de mim.

Casciano Lopes

Pincel molhado

Quando chove a cor púrpura em minhas paredes e borra meus beges de lilás, reconstruo-me feito prédio disposto a se molhar, que se empresta ao enxague das torrentes e que mantém dependuradas suas cores do céu escorridas.

Casciano Lopes

Pequenos pousos de grandes voos

De tudo que ganhei na vida,

o mais precioso é observar passarinhos.

O tempo que ganho hoje,

recupera e eleva qualquer perda.

Casciano Lopes

A que será...

A que será que se destina? Tantos rios que cortaram o quintal lá de casa... tantos desertos no caminho lá de casa... tantos cactos na janela lá de casa... tantos portos e praias batendo na porta lá de casa...

Não fossem as margaridas que nasceram sem licença na margem da rodovia, o que haveria de distração, quando os pés encontraram a dureza quente do chão do caminho lá de casa?

Não existissem eu e a vontade de chegar em casa, o que haveria com o muro que precisava ser saltado, porque dividia a distância do pertinho, no caminho lá de casa?

Casciano Lopes

Prescrição de idade

É preciso saber a vida em doses miúdas,

pra que durem seus efeitos...

salivar seu gosto sem grandes efeitos colaterais no viver devagarinho,

pra dar tempo de conhecer a fórmula sem ler a bula.

Casciano Lopes

Na véspera dos 53 anos em 'Vento tem dessas coisas'

Como o vento fui passando...

levantei toalhas das mesas, esvoacei cortinas, remexi lençóis limpos e esticados sobre as camas, bati portas, sacolejei janelas, uivei nas madrugadas aos pés das soleiras, resmunguei arrepios embrenhando-me nas frestas das paredes, discursei em ventania nas casas que vi e vivi tempo suficiente pra ter no vento a força de minhas colunas, que continuam em pé, e eu ainda estiro um olhar sobre minha mobília e seus adereços, toda vez que venta.

Casciano Lopes

Meu, particular

Que não me definam as opiniões,

afinal,

o céu e o inferno de cada um é isento de multidões.

Casciano Lopes

Querer espesso

Preciso ser endereço

Saber de mim

O que posso e mereço

Pra que me encontre

O carteiro e o apreço

E que não me concluam...

As cartas, o destino

Porque tenho avessos.

Casciano Lopes

Tudo está em calma... Calma!

Não espere dos meses suas colheitas e frutos da gestação, nem dos anos suas comemorações e réveillons...
Não se gaste esperando os dias, planejando viagens ou elaborando horas de corpo dançante.
Se consuma em acontecer a todo instante um riso, em ser da vida o milagre. Se concentre no plantio da árvore como quem não anseia sua sombra.
Se permita apenas ser alguém que sabe do tempo o que ele tem de melhor... o segredo.

Casciano Lopes

Caça e predador

O que é que há ou haverá com a fera quando retrocede diante dos campos frágeis da mente? Quando cala-se a fúria, sei que a muda coragem, caminha por entre silêncios ferozmente, fazendo as presas de dentro de si, libertas.

Casciano Lopes