20.12.11

Balaio

Num quarto daquela casa
Escondido e bem guardado
Em um canto empoeirado
Guarda-se de trançado
Um feitio de palha casada.


Naquela casa velha de morar
Guarnecido de verniz
Esquecido que ninguém quis
Já sem tampa e infeliz
Naquele quarto de guardar.


Vive preso na memória
Enjaulado e bem tramado
Feito arquivo embolorado
Com um passado judiado
Sem galeria nem glória.


De ingênuo apelidado
De canto a olhar de soslaio
De confissões vistas em desmaio
Aposentado em algum maio
Agora só um pobre coitado.


Balaio
Recordações em cana, palha, vime, sapé ou cipó
Emaranhado bem feito de guardar sem dó
O que se juntou na vida partilhada ou por si só
No mantimento do passado fechado em nó
Ou no presente museu aberto com ou sem pó.
Balaio.


Casciano Lopes

19.12.11

Caso nas mãos

Passe tua leitura cigana nas curvas
Veja cada esquina em que parei
Cada telhado em que subi
Cada avenida que tracei
Cada bosque que senti
Cada beco que criei
Cada ladeira que desci
Cada rua deserta que colonizei
Cada marquise onde amanheci.

Escreva sem pena tua sentença
Nessas folhas que dedilho em branco
Cuida das dobras passadas da descrença
Redescubra as dobradas que espanco
Vem com mãos cheias de crença
Conte e cante aos outros meu canto
Todos que conseguirem ler minha nascença
Espalmada aqui... No caso ou mão que estanco.

Casciano Lopes

Ensaio de amor

Corta a alma como o vidraceiro o vidro
Como diamante o azulejo corta
Lapida o bruto e das jazidas o embrutecido
Transforma o valor na balança do ourives
Muda a fórmula e mistura o cheiro nas mãos do alquimista
Vira descoberta na máquina científica
Nos ensaios e seus tubos potencia sua existência.


O amor...
O que desce à sepultura
O que ressuscita do imerso
Vivo em fantasias
Coroado de brilhantes
Alucina a imagem
Submerge as pupilas
Ondas salgadas
Banha o quebranto
Cinge de sorriso lábios
E de desejo o poeta coração.


Casciano Lopes

16.12.11

Hoje

Hoje viajei,
No ônibus de trabalho viajei,
Como quem não existe viajei,
Ninguém viajava além de mim.


O suspiro de eco,
Suspirado emitia imensidão,
Compreendida entre quatro rodas,
E o que até então não existia.


Contei tudo ao vidro de minha janela,
Iludindo meu assento olhei sussurrando,
Paisagens corriam de manso,
Sem descanso para a ilusão.


O veículo que veloz conduzia,
Angustiava o destino e fugia dele.
Condutor não buzinou e viajou comigo.
Um transporte que me arrebatou.


Hoje esqueci de descer,
Não sei como subi!
Se pelo caminho desviado,
Ou se pelo que encontrei no caminho.


Vou descer...
Descer no corpo,
No ponto de descer,
No trabalho de acordar e ver o hoje.


Só hoje desci.


Casciano Lopes

Cá tem lá

Estranho é buscar o que se foi por vontade própria
Querer retomar uma lição já aprendida
Ferir duas vezes um mesmo doente, uma mesma ferida
Estranho é repartir um pão já engolido
Matar o que já se enterrou distante
Emprestar lenço ao choroso ausente.

Mão longe, olhos desencontrados, bocas não vistas
O suor pinga feito lágrima na barra da calça
Calça de caminhar solitária, calça de vagar
Estranho...
Dormir só cá
Dormir só lá.

Estranho... música... estranha partitura
De "dó", "lá"
Vamos leitor!
Solfeje comigo
Sinta comigo a estranheza dessa tarde
Dessa letra, dessa música ausente.

Caminhe no seu quadrado de pensar
Ouça enquanto caminha sua calça de vagar
Onde está sua boca longe?
Estranho...
Pare! Ao suar seu choro na barra das pernas
Só de caminhar devagar...

Casciano Lopes

13.12.11

Ano novo...

Que venha transparente
Como tem que ser a verdade
Verde
Como tem que ser a esperança
Branco
Como tem que ser a paz
Vermelho
Como tem que ser a paixão pela vida
Listrado
Como tem que ser a alegria
Xadrez
Como o mural dos amigos
E estampado
Como tem que ser o riso.


Reto ou sinuoso caminho...
De flores para o adormecer
De pétalas para o amanhecer
E que o perfume dos jardins
Complemente as cores
Das janelas e portas
Traduzindo em vontade de viver
Mais outro tanto sem desbotar
Na descrença do lúdico
E que finalmente na soleira da porta
Se sente um violão
Que saiba ninar as canções
Que o colorido mundo imaginar.


Casciano Lopes

12.12.11

Memória repensada

Repenso uma lágrima antiga,
Rememoro um sorriso franzino,
E me refresco em antigas gargalhadas.
Me descubro rico,
Enxergo um baú guardado e abro,
De memórias com seus rabiscos é feito,
E como se pudesse saltar-me ao colo,
Como se pudesse voar aos ouvidos,
Traz perfumes históricos,
Dos dias maiores.
No tato percebo quieto,
Tanto barulho e tanta vida,
Em tão pouca posse...
Sou rico dos sentidos, sentimentos
E de tantas mais desconhecidas memórias.


Casciano Lopes

Introverso

Um corpo...
É só um itinerante dentro deste universo.


Com mãos de letras feitas em pergaminhos
Pernas de cifras descritas no imerso
Dos pés de composição de caminhos
Ou na pele de acordes inéditos em verso.


Olhos em bemóis, em pares ou sozinhos
Cabelos em sustenidos acidentam-se no submerso
Ouvidos de ler canção descritas nos desalinhos
Colo de sentar para compor o inverso.


Perfume de dividir espaços e linhas com vizinhos
Um coração desenhado em pentagrama convexo.


Observo
O controverso,
Adverso,
Perverso
E disperso.
Enquanto converso
Introverso.


Casciano Lopes

8.12.11

Pergunta à Santa

Oh, Maria!
Que tens o segredo da mãe
E deténs o verbo da santa,
Responde-me, oh, Maria...
O que sentiste?
Foi de mãe ou de santa tua alegria?
Foi de carne ou de poesia tua romaria?
Diz-me, foi do Cristo ou do filho, o teu andado?
Se conseguires, Oh... Maria!
Diz-me o tamanho daquela dor...
Quando a noite se fechou em pleno dia,
Foi dupla tua agonia?
Foi de mãe que tudo via ou de filha que sofria?
Ou, se do Cristo que partia, em teu choro que esvaia?
E a lágrima que caia?
Foi de santa ou de Maria?


Casciano Lopes

É

O belo está em ser o que é,
Sem destituir ninguém de sua honradez.
Por isso o caráter me impede
De vestir-me de suas vontades.


Casciano Lopes

Cheiro de fumo

Vi meu avô...
Sentado na lembrança do alpendre
De uma casa suspensa amadeirada
De assoalhos envernizados
Com brilho de escovão.
Descascava um rolo de fumo
Como saboreando um gosto
Mastigando pensamentos
Cuspia dos dias desgosto.
Canivete de níquel fino
Todo prosa preparava
A palha como se fizesse
Um plantio de milharal.
Voltei ao meu quintal despertado
Como pelo alarde do som da matraca
Plantadeira velha dependurada
Como meu avô, por ora calada.


Casciano Lopes

O que a vista avista

Hoje concretei um coração


Para não perder a latitude de um pulso


Reboquei e judiei na lixa uma parede falsa


Esboçada na frente de meu prédio


Para esconder um mundo de tijolos sorridentes


E outro mundo de janelas choronas.


Casciano Lopes

Ideias insanas

Um perdido

Inigualável insano
Queima cartuchos antes da luta
Na luta se rende
Suspendendo mãos em bandeira branca
Sem armas se esconde dentre risos
Caricato disfarça um ferimento...
Que palpita...

Sobre e sob pés

Dança como bailarino

Um sapateado

Esmagando a dor

E ela... A dor?
Foge!


Desabrocha ao lado,
Feito gêmea
A companhia


Doente pelas ideias que compra

Soma
Adquiri
Assimila
Acredita
Que exista
Sua criação
Em pirâmides
É seu amo de leite...
Que 'sustança'!
Crescem...
Grandes demais!
Não
Pode
Carregá-las...

Para onde levá-las para fazer viver?

Ideias reais
Do irreal e imutável louco em torno
O mundo comum
E o camarada que criou o incomum?
Incomum é não ser louco
É não querer viver para ser...

Louco
Louco!

E quer, quer muito!
Insano é ser imutável
Melhor é ser mutante
Incomum sonhador de loucuras
Foge, foge, foge...
Se esconde
Nas ideias aumentadas.

Hoje disfarça-se
De um...
Só mais um...
Louco qualquer.


Casciano Lopes

Nos Cascos

Caminha por baixo, lenta, lesa e certa da chegada, dada à balançar a cabeça, dá com a língua, mal educada!
Quase em sonolência, à mostra carapaça, passa muda, em regime de folhas e palavras, cascuda, faz assento ao despercebido, andando um centímetro por minuto, não está estressada a que dança, sei lá que ritmo.
Esperta, guarda o que é carne e assim fica indigesta. O que por ela manda o recado, chega envelhecido. Da morte bem que poderia ser anjo de busca, poderia ser tudo... Preferiu ser tartaruga, sem cardiopatias...

Casciano Lopes

7.12.11

Brasil demo'crático

Não foi pra mim que fizeram,
Não foi pra mim que fizeram...
Casa de morar
Rua de brincar
Escola de estudar
Hospital pra me tratar
Parque pra passear
Não foi pra mim...
AI!
Foi pra mim...
Foi pra mim...
Ai, foi pra mim

O desterro de meu mundo
Esgoto a céu aberto imundo
À margem meu submundo
Meu apelido de vagabundo
Sou povo...
Não me deram muito,
Mas pouco,
Um título de Eleitor,
Doado pela democracia,
Com uma única condição:
A obrigatoriedade do voto,
Democrático...
VOTO.

Casciano Lopes

Refugiado

Juntei meu pano de escrita
Fiz tenda do que escrevia
Colhi minha fruta no pé
Plantei  a semente um dia
Judiei no riso uma criança
Na gargalhada veio a poesia
Completei o jogo de peças
Com o fim da melancolia
Embora se foi a tolice
Restou-me a rebeldia
Enquanto ventava no mundo
Chovia na tenda, dentro escorria
As letras brotaram da semente
A fruta de minha ideologia.


Casciano Lopes

Inerente

Quem é a letra que codifica o homem?
Quem é a cela que fecha um destino manchado pela tinta azul?
Quem é a verdade de um juramento sobre a capa preta do livro?
Quem é o tormento dentre linhas criadas natas, ou seria inatas?
Quem é esculpido nos dedos? Cuspido... Escarrado...
Se não for a digital de um corpo nu,
Será a cruz fadada das linhas peladas.


Casciano Lopes

Infância de vidro

Olha que lindo!
Aquele sambudo com outros sambudos,
Agachados dando petelecos em suas bolinhas,
À mirar a terra roxa e fofa de um Paraná.
Um verdadeiro futebol de "burquinhas",
Coloridas e transparentes como a inocência deles,
Veja se não são versos de uma pátria limpa.


Casciano Lopes

Terreiro em preto & branco

Avança a noite, adentro do breu de lamparina. Distante, os atabaques anunciam que a saia da negra começa seu giro, que Birimba inda jovem toca berimbau.
As matas são cortadas por meninos de branco, os tocos se ascendem em chama no quintal, as bananeiras balançam-se no surdo do vento, o ronco dos pés, no batido do chão dão o tom.
A roda formada reverencia a raça, a cantoria de garganta afinada no chicote, ilumina a pele. O coro formado, acompanha o batido do couro, bate na noite e na mão conta o tempo, canta história. Gritam negros na madrugada, hora de fazer liberdade. No desce e sobe dessas horas em que ancestrais sonharam, não dorme o choro que vive em alegria, vive na roda, na folia, na música, no seio das matas e cidades, vive na alta e na baixa, na graça e riso de qualquer instrumento, liberdade dos fortes, estampada no branco da roupa e no tinto da pele, vivem negando ou afirmando seus ais, buscando o que buscaram seus pais.

Casciano Lopes

Abençoai as pedras que cantam

Sem cordas ao toque sutil
ao resvalar no cantil
ao se esmerar no esmeril
ao correr pelo rio
no bolso infantil
Ou nas mãos da moça gentil.

Casciano Lopes

Não é preciso morrer

Nasce...
Da madre... Filho
Da noviça... Freira
Da água... Sede
Como nasce...
Sal das salinas
Pepitas de garimpos
Ossos de jazigos
Como nasce...
Vidro do fogo
Poeira da pele
Trigo do campo.
Lembrando...
Nasce
Cresce
E morre...
Alguns morrem!


Casciano Lopes

No mesmo mar

A boia e o náufrago,
A garrafa e a mensagem,
A brisa e a tempestade,
A água e o sal.
Navegam juntos, o diferente,
Misturam-se como se iguais fossem,
A soma de diferenças.
O poeta é solitário,
A soma é que faz poesia,
Junta a alma franca,
O papel solitário,
E dança a caligrafia nas mãos
De uma caneta azul,
Quase cor do mar,
Quase fala a evolução da pena,
Quase chora diante do que transcreve...
Se não fossem as diferenças,
Clamaria de dar pena
O oceano que tenho nas mãos.


Casciano Lopes

Ainda ontem

Meus moços, estão nas ruelas que cortam meu estado de nostalgia, nas veias que latem feito cão nas cadeias de meus delitos, detentos por sobriedade, estão na provocação de cada porta e cada avistada ao longe, acima da costura fiel e abaixo do cós da sedução.
Nos meus sonhos encontro cada qual com seu corpo em viés, balaustres que sustentam meu ímpeto, aprisionando a ira de meus nervos, eles desviam-se do invisível, do que destila veneno que não mata, do que sacia a ilusão de olhar só mais um pouco.
Meus moços, seu moço...
Caminham na pele, por entre dentes de uma confusa lembrança, sem rostos, mas em corpos talhados, banhados por cheiro de mato.
Dormem em camas plácidas, ou nem tanto, distantes do suor amadeirado de meu tom de cana, fujões dos portões lanceados, das correias frouxas de franciscanas gastas. Estão nas matas virgens ou desmatadas, de um passado insano ou entrincheirado nas batalhas fúteis de um presente incômodo.
Meus moços.. Meus moços...
Ou me mata a procura, ou me mato buscando.

Casciano Lopes

6.12.11

Terra não prometida

Sou daqueles que passo sem graça
Fingindo existir pra amanhecer
Às vezes deitado e acordado na praça
Mentindo a mim mesmo pra sobreviver
Alguém que só sabe falar se for de desgraça
Sentindo de longe pra dor esquecer
Um sujo e seboso sem banho que faça
A alegria voltar pra eu não falecer
Velho tento lembrar da receita da massa
Que me fez tão bonito e me deixou crescer
Pra hoje partir e servir com cachaça
Um filho de Deus sem querer ofender.


Casciano Lopes

Moral da história

Ao meu Tanto!

No entanto...
Eu não sabia que tinha nome de
santo,
Que vinha deformando meu
pranto,
Com jeito e graça modelando um
canto.
Fazendo com as mãos uma proteção de
manto,
Me vestindo de paz em formato de
banto,
Virando o confuso em calmo
acalanto,
Tirando da vida todo o
quebranto.


Mas agora que sei...
Vou ficar no portão esperando outro
tanto,
O dia que passa em céu
amaranto,
A noite que chega trazendo o
encanto,
E a cama que espera encenando
recanto.


Casciano Lopes

Sem beleza

O mundo sem poesia é apenas um qualquer,
Beira o caos de um salve-se quem puder.


É um Paulinho da Viola sem Dança da solidão,
Chico sem Construção,
Cauby sem Conceição,
Gil sem Procissão,
Elis sem Fascinação,
Um João Gilberto sem violão.


A poesia alimenta fanfarra, banda e orquestra,
Maestrina quando sem lisonja se manifesta.


Sem ela...
Morre o palco, a luz e o cenário,
A platéia junto com seu relicário.
Órfão fica o livro, sem glossário.
O homem vira caixa de ossário.


Casciano Lopes

4.12.11

(a+b)² = a²+2ab+b²

A matemática é uma ciência exata
Porque não pede licença para ferir alguém
Não rouba o que não lhe pertence
Não faz uso da hipocrisia
Não conhece moralidades ou imoralidades
Simplesmente é o que é
Não se condena e nem se contradiz
E, há tempos, discorda da religião.


Casciano Lopes

30.11.11

Universo de um corpo

Um homem...
Outro homem...
Vários homens...
Antigo
Moderno
Arcaico
Contemporâneo
Gótico
Barroco
Andarilho
Caminhante
Náufrago
Navegante
Perdido
Centrado
Ensimesmado
Entusiasmado...
Mundo de homens...
Homens viventes
Conviventes
Um só sopro
Só um corpo
De habitar
Homens.

Casciano Lopes

29.11.11

Sepulcro de infância

Preso o brinquedo empobrece
Sem criança ele entristece
Procura lágrima quando amanhece
Querendo colo que nunca se esquece.


Numa caixa da casa guardado
O brincante esquece rasgado
Junto com o menino amadurado
Convive um boneco largado.


Passado aquele contentamento
O motivo de presente e alento
Por descuido ou crescimento
Foi deixado sem música e movimento.


As cores um dia se desbotaram
Junto com lápis os porquês levaram
Pelo caminho a inocência deixaram
Julgadas porque a beleza afanaram.


Adulto crescido, despido ou vestido
Fica...
Sem criança o homem amortecido
Quando na caixa dorme esquecido
O brinquedo falecido.


Casciano Lopes

28.11.11

Amiga do pavio

A lamparina embebida mirava a mesa perneta
A cadeira sem tinta de madeira alva bem feita
A janela sem batente estendida numa parede sem cor
E a cozinha com seu chão de vermelhão queimado
De seu posto enxergava o banheiro de criar pererecas
O pote de barro de água de poço com sua caneca de alumínio
De um amassado que mais parecia ter servido o exército
Um fogão à lenha rubro abastecido de madeira rasteira
Defumando o telhado enquanto ela, pequena colaborava.
Olhava atenta o brilho da bateria com suas vasilhas de guerra
Admirava o guarda-comidas franco e sem vergonha alguma
De desfilar sem portas suas merendas ralas e seus guardados
De domingos enriquecidos com os frangos garimpados do terreiro
Enquanto trabalhava como lançador de chamas a observadora
Não descuidava do vasilhame de guardar seu combustível
Protegido cuidadosamente em altura sobre o móvel
Toda temerosa de que se esquecessem de alimentá-la
Esperava ansiosa a próxima dose colocada delicadamente
Compartilhada, é claro, com o pavio de algodão trançado
Parceiro na arte de dar a luz feita de labaredas
Fazendo dela parceira do fogão na arte de construir picumãs.

Casciano Lopes

24.11.11

Humanamente

Ninguém é perfeito...
Uma mentira...
Quem nunca contou?
Um tapa...
Quem já não doou?
Uma indelicadeza...
Quem já não provou?
É preciso humildade...
De reconhecer, há necessidade.
Ai mora o quase perfeito
O segredo de corrigir um mal feito
É um olhar de atenção
Um pedido de desculpas então
E ser modesto num aperto de mão.


Casciano Lopes

Sala de Sinhazinha

Na parede um rádio grande em prateleira encerada
Posava em lugar de santo com sua cor aveludada
Em destaque na sala de assoalho forrada
Rezava na parede de madeira caiada
Ave Maria, dezoito horas, todo dia era sagrada
Aos domingos a moda era de viola afinada
Lembrando rancheiras noturnas dos trovadores
De sábados apadrinhados por causos de contadores.

Na mesma sala dependurado algo de invocação
Um belo quadro azul com seu vidro de proteção
Trazia uma imagem tão linda com uma bandeja na mão
Seu manto com pregas reais tinha movimentação
Só não saia dali porque o vidro impedia ou o quadro a prendia
Na bandeja dois olhos, não é que era Santa Luzia!

Nas madrugadas antes da roça
Passava ali tanta prosa
Vinha Zé Bettio
Guerino
Oswaldo Bettio
Arlindo Bettio
O rádio é que iludia
A santa que tudo via
Enquanto raiava o dia.

Casciano Lopes

Um pedido

Meu menino...
Cuide para que toda a gente
Veja o luar do sertão
Depois que o sol se deita no horizonte,
Que sintam o cheiro da terra molhada
Depois daquela chuva vinda do pasto,
Que vejam a palhoça em flor,
Os pés de amoras carregados
E a estrada de poeira cavalgada.
Cuide para que a vida
Tenha quantos dias possa contar
E que neles
O circo nunca se acabe,
Nem as paineiras e nem o algodão doce.
Que viva um poeta na garganta
E que o curió na janela
Te lembre do inhambu da minha terra.


Casciano Lopes

Na peneira

Carreadores...
Assim chamavam aquelas retas imensas
Todas paralelas que a certo ponto
Se acidentavam em curvas acentuadas.
Ainda me lembro daquele mundo de chapéus
Todos de palha como de palha eram os cigarrinhos
Colocados delicadamente atrás das orelhas.
Homens de remendos e mulheres de calças
Sobrevestida de vestidos e todos de mangas longas
Fiscalizados pelo do bigode e seu cavalo.
A beira dos caminhos via-se aos montes
Picuas que guardavam garrafas d'água ou garapa
Embornais de algodão crú com suas marmitas
Cozidas, esquentadas ou requentadas
As quatro da madrugada em fogões à lenha.
Por todo o dia os rastelos alvoroçados produziam
Limpavam as sementes folheadas que caíam.


- Sabiam que a semente cai
Para dar trabalho ao que rastela de sol a sol?
- Que as folhas se precipitam
Pois a mulher precisa cantar
Eu tava na peneira, eu tava peneirando
Enquanto abana o fruto e sua folha?


É assim...
Um chacoalha o pé aqui
Outro rastela ali
Uma abana sua cantiga acolá
Enquanto adiante uma comadre
Com seu torrador no terreiro
Em brasas torra seu café
Para na lata florida guardar
E depois moer no moinho de varanda.


Fim de tarde na fazenda
Saco de coador, bule esmaltado
Os compadres em dedos de prosa
Seguram suas canecas de ágata
Seus meninos pelo chão
Jogam felipes de prendas
E na cidade homens compõem...
Uma mesa e um violão
Asas de xícaras com pires
Cafézinho fumaçando
Uma história se passando
Traz o som do cafezal.


Casciano Lopes

21.11.11

Busca incompleta

Sou um que nasceu
Que nasce todos os dias
Tentando ser Eu
Busco e não encontro
O que encontrei
Não me completou.


Casciano Lopes

19.11.11

Homem composto

Aquele pássaro que pousa acolá
O burrico que marcha na feira
Sou eu...
A tempestade que desisti de chover
A nuvem envergonhada do morro
Sou eu...
A luneta que mira o céu
Aquele livro guardado longe
Sou eu...
Um homem colorido
O tapete estampado de voar
Tenho todos os brancos
Todos os pretos
E uma porção de céus
Que forram meu chão
Que mandam meus astros
E que diluem dentro de mim
As lonas do circo
Os tablados das construções
E os assoalhos do passado
Quase uma partitura
Quando durmo maestro
Quando acordo rio
Quando silencio um mar no peito
Guardo as pedras
Da calçada
Da rua de morar
Um menino de letreiros
Cheio de bilhetes
Com questões
Respostas vãs do mundo torto
A letra da futura carta
O carteiro da antiga
Aquela mulher feia da esquina
A pipa desequilibrada do vento
A pressa que não chega
O azeite quase virgem
A cama desfeita escondida
A estação desabitada da madrugada
O trem das cinco
O lanterninha de fazer cinema
A sala quadrada dos pares
A rampa da terra de porteiras
O esculacho da noite
Sou eu...
Simples e composto.


Casciano Lopes