28.1.11

Paisagem em chamas

Avista-se
Uma ponte
Velha, retorcida
Emborcada, despedaçada
Sem passagem e passageiro
Do outro lado brejeiro
Um casebre de uma cal
Envelhecida, enegrecida
Com seu tempo crú
Seu passado cozido nú
Por conjugação esquecida
Sua única porta sem chave
Sem Ave Maria
Como radiola sem clave
Chão de terra sem charme
O teto de palha seca
Furado, esturricado
Sabe contar dos moradores
Lembra-se dos trovadores
Dos domingos de galinhada
Do revoar da passarada
No terreiro de criação
Tomou conta o poeirão
Escondendo a cacimba
Que lembra do pato Simba
Conta os papos das comadres
Dos cachimbos e compadres
Ri das tapas dos guris
Das façanhas que viu ali
Lá pra banda do forno de barro
Outrora um pássaro João raro
Deixou escrito então...
A seca levou as Marias
Os Antonios e Josés
Enterrados sem lágrimas
Sem missas
Sem caixão
Já dormem nesse chão
Onde brota o mato
Parido da última água no Crato
Que veio depois da morte
Chegou depois da sorte
Matando de sede um monte
E emborcando a ponte.


Casciano Lopes

Dama Ana

Dama
De
Minha
Cama

Na
Lama
Na
Cana

Ama
De
Minha
Dama

Minha
Cama
De
Cana

Dama
Ana
Ama
Cana
Cama
Lama

Casciano Lopes

Isso basta

Que perca a água retida na massa do corpo
Que a mão firme só escreva ais
Que o solo se rompa embaixo das plantas
Que o verde não se reconheça na visão
Que o grito entale nas entranhas
Que os sentidos conheçam poucas cores
Que os painéis se empalideçam
Que emudeçam os cachorros
Que aos ventos se ensurdeçam os cabelos
Ainda assim
Uiva calado um sentimento de amor
Fala baixo
Mas sincopado
Mesmo em uma nota só
Não desafina
Diante do mundo maestro
Bate vivo um cansado
Só cansado
Cansado
Mas vivo
Isso basta.


Casciano Lopes

Lagoa seca

Quero atingir o magma
Ele está lá...
Embaixo da lagoa
Vem o peixe
Vem as algas
A areia
Vem a terra
Os lençóis d'água
E depois vem...
Vem mais
Vou além demais
Quero o magma
Seu calor
Seu borbulhar
Dissecando minhas carnes
Dilacerando minha poesia
Lá a lagoa seca!
Até lá...
Eu velho escavo
Para morrer escaldado
Mas poeta sempre
Sempre quente
Até que o calor me absorva
Morrendo na liga
De um borbulhante coração
Vem as letras
Debaixo do magma
Vem a vida poetisa.


Casciano Lopes

A fome e a vontade

Ai... Judia...
Mancha meu papel de pão
Com tua margarina
Deixa na minha lapela teu gosto
Mora cá no meu prato
Escasso de tempero apimentado
Molha só um tiquinho
Os pés ou os cabelos
Passeia nessa praia
Traça o rastro de teu cometa
Atrás de minhas estrelas
Banha minha terra
Com a chuva do teu céu
Visita minha roça ressequida
Faz brotar as espigas
Colha os grãos
Replante no meu centro tua colheita.
Sou de pasto
Se você é de pastagem.


Casciano Lopes

27.1.11

Tanto mundo

Aos do Brasil
Dos Estados Unidos
Do Canadá
Da Hungria
Do Japão
Do Reino Unido
Da Grécia
Dos Emirados Árabes Unidos
Da Bolívia
Do Chile
Da França
Da Itália
Da Espanha
De Portugal
De Belarus
Da Rússia
Da Argélia
Da Macedônia
Da Alemanha
Da Eslovênia
Da Estônia
Do México
Da Índia
Da Suíça
De Taiwan
Da Polônia
E de tantos mais países
Desconhecidos de meu mapa
Reconhecidos de meu afeto
A todos aqui globalizados
Um tanto de meu desejo
Mais um tanto de minha dor
Outro tanto de minha alegria
Da conhecida euforia
Desconhecida poesia
Agradeço tanto
Tanto o todos
Quanto o pouco
Que tanto tenho.


Casciano Lopes

18.1.11

O que dizem

Dizem que sou louco...
Porque...
Esqueci da infância
Perdi a adolescência


A porta errei
Da maturidade
Do que dizem
Legalidade


Bebi o que não devia
Comi o que ninguém queria
Dormi o que não dormia
Fugi do que não sumia


Fiz o que não sabia
Perdi o que não existia
Esperei o que não via
Por fim não construía


Sou louco
Hoje sou louco
Amanhã
A loucura decidirá
Só amanhã
Porque depois de amanhã
Dirão do insano
Insanidades mais
Desconhecidas
De minha neurose.


Casciano Lopes

Morte em vida

Parte um homem cabisbaixo
Repleto de lembrança
Incompleto de esperança
Entristecido
Embrutecido
Flácido no desejo
Plácido no infortúnio.
Não fica nada...
A vontade acamada
Despede-se desesperada
Da alma cansada.


Casciano Lopes

17.1.11

Minutos dizentes

Os minutos se escondem dos ponteiros,
mas são descobertos num tiquetaquear assobiado
de um coração cheio de saudade
guardado também num coração
de quem sabe a importância daquilo que a ninguém mais importa...
a verdadeira amizade e o segredo
que guardam os olhares apaixonados
pelas palavras de quem sabe dizê-las.

Casciano Lopes

Que... Que... Que...

Que tua graça permaneça viva
como a que balança na cadeira que fica...
Que tua fé esteja nos montes onde os olhos carnais não enxergam...
Que a lágrima corra num riacho distante de ti...
Que a febre só aqueça o que está congelado pelo sistema...
Que a rua tenha tanto preto quanto precisar
e tanto branco quanto precise lembrar...
Que a mata possa morar pertinho com seus tons de sóis...
Que a lua traga mais que São Jorge e um cavalo...
Que a cama seja larga quanto tua esperança
e que nas plantas de teus pés possam crescer asas além das raízes.


Casciano Lopes

Saudade de Lele

Hoje, quando voltei para casa,
encontrei uma grama triste
em um canteiro central de uma rua próxima,
enquanto caminhava o caminho que se estendia...
Pensava o que poderia entristecer
de um verde turvado uma grama outrora orvalhada,
conclui que como eu deveria estar sentindo saudade
de uma notável que mora distante.
Ahhhh como me faz falta você
e sua inocência lúdica diante das tempestades...
Quase criança...
Quase Diva pop...
Quase celestial...
Você e os momentos numa grama qualquer.
Saudade do tamanho necessário
para fazer pequeno um peito
e grande um coração para caber nele.


Casciano Lopes

Vivo sonho

O sonho só é importante porque faz possível:
Compor o surdo
Solfejar o mudo
Cantarolar o enfermo
Assobiar o desencantado
E encantar-se o cego.
É igualmente importante
Porque faz crer na mentira e mentir na descrença
Faz sorrir quando é de lágrima o pranto
E prantear quando é de sorriso nossa volta.
Importante se faz sonhar
Quando é de saudade o muro de nossa Berlim
Quando é de amanteigado o coração
E quando os olhos insistem em dizer pra alma
Que é de sonho que se faz nosso jantar.
Isso faz com que o café da manhã do dia vindouro
Seja compartilhado com a importância de estar vivo só...
Somente só... para poder sonhar.

Casciano Lopes

14.1.11

Couro de batuque

No batuque do teu surdo
Emudeci minha garganta
Esganiçada agora calada
Porque a marcação de teu tempo
Cala a banda, a praça.
A graça vem batida
Fazendo sentir tremer
Os tímpanos da alma
Como se ao lado dos abalos estivesse.
Quando passa amarrado a cintura
O teu couro de bater
Nas mãos a marreta do instrumento
Fico surdo e das cavidades de meu rosto
Brotam "ais" e "uis".
Sopros se agonizam
Arremessando-me ao teu chão
Para ouvir de perto teu eco
Teu bate-bate sacolejado
Respingando meus couros.


Casciano Lopes

13.1.11

Impasse

Lá fora vai um mundo
Frio
Vazio
Esguio
Cá dentro um homem
De robusta vontade
Augusta saudade
Assusta a coragem.

Casciano Lopes

12.1.11

Grande pequeno demais

Não tive tempo
De brincar pelas praças
Não tinha cidade
Não tinha a ruela da vila
De "adolescer" na idade
Não tinha os amigos
Não tinha inocência a perder.
Não tive tempo
De formar uma concepção
Uma idéia construída
Um ideal estudado
Um futuro programado.
Apenas descobri-me
Vivo
Num tempo além
Num mundo adiante
Num homem pronto
Numa vontade de perguntar
Como?


Casciano Lopes