29.4.23

Por mãos pequenas

- Rápido demais! Reclamou o menino.
Antes de ontem, quando aprendeu a andar de bicicleta, desceu a ladeira livre na vermelhinha e logo foi chamado pra assinar a carteira de trabalho. Poderia ter continuado pedalando, mas preferiu dormir de cansaço nos ônibus da antiga CMTC.
Ontem, ainda menino, aprendeu a dirigir num fusca vermelho antes de ir pra escola. Foi e não deixou por menos, documentou-se 'de maior'. Dirigiu poucas estradas, o trabalho não dava a carta de alforria.
Hoje cedo, o menino caminhou distâncias; recomendações médicas, subiu e desceu picos com uma energia que poderia ter corrido, não o fez porque não precisava de pressa.
Entardeceu...
O menino agora não pode andar de bicicleta, não pode dirigir e muito menos correr, perdeu o poder de marcha livre e vive amparado, não só por uma órtese, mas pelas mãos do menino que não se apressa mais e diz:
- Calma... Quando anoitecer estarei aqui.

Casciano Lopes


28.4.23

Vivejando

Passamos tempo demais medindo distâncias aqui; julgamos distante a praia que amamos, longe demais aquela cabana dos sonhos nas montanhas, de difícil acesso aquele retiro zen dos fransciscanos que tanto gostaríamos de conhecer...
Gastamos tempo demais como se tempo fosse coisa de se medir.
Daqui... Acolá... Medindo... Horas, dias... Nos gastamos!
Quando tudo é uma questão de cruzar portas vizinhas, tudo mora ao lado; o lado de lá e o lado de cá moram na mesma rua e a gente só precisa atravessar sem réguas o grande passeio da vida.

Casciano Lopes


Calados e calados

Leva um certo tempo pra aprender o silêncio, é preciso amadurecer pra ser de poucas palavras e precisar de menos palavras ainda pra entender o outro; talvez porque dentro da gente exista um marcador de importâncias, algo que diz que calar as nossas certezas não nos põe em desvantagem diante do outro, nos coloca sim, em paz diante de nossas dúvidas, e aí calamos bem, no conforto do tempo que passa sem alarde.

Casciano Lopes


O desapego proporciona calma

Muitas vezes só precisamos soltar o controle.
Deixar de querer o que não está no cardápio do dia e saborear o prato preparado; não quer dizer que você abriu mão de sua vontade, quer dizer que você entendeu a gratidão.
Entender a casa do caminho e o caminho de casa é deixar irem as necessidades inventadas, as preocupações criadas e viver o inesperado como se houvesse planejado, afinal, aquilo que se espera tanto, quase sempre nos cobra um controle do imponderável que não temos, a liberdade de caminhar disposto e disponível, traz alívio e a amplidão em volta da estrada permitirá criação, o controle não.

Casciano Lopes


26.4.23

Eu nas mãos

Se te custar a liberdade
dizer o que pensa,
defender tuas ideologias
e fazer valer
tuas vontades e propósitos....
Então serás livre.

Casciano Lopes


24.4.23

Dispersão

Todos nós queremos 'Rios' antigos, todos na verdade ansiamos pela velha guarda da escola de coração...
E nem sempre nascemos cariocas ou fomos jovens passistas da Mangueira...
É que na verdade a vida é uma grande avenida; aportamos na concentração e nos esforçamos pra manter o ritmo ao longo do grande rio de sambistas, o destino é a apoteose... Queremos, só que não.

Casciano Lopes


Linguagem

O corpo fala...
Falam os pés ansiosos quando caminham metros como se fossem quilômetros.
Falam os dedos apressados quando marcham compassos sobre a mesa.
Falam os braços cansados quando laçam em nós apertados o outro dentro de um abraço.
Falam as mãos trêmulas quando acariciam a face do espelho como se fosse o medo.
Falam a angústia e a dúvida nos olhos que não perdem a fala mesmo quando a boca muda de opinião e fica muda...
O corpo fala.

Casciano Lopes


Tudo em mim

Tenho memórias...
Até do rio que passava atrás de casa! Menino do rio da fazenda... Memórias.
Tenho águas e uma gente toda que mata a sede morando em mim.
Memorar me causa cardumes e varas de pesca, e se não morro de fome é porque como os peixes assados na brasa que é lembrar.

Casciano Lopes


Eu decido

Todo dia eu escolho qual será,
terça ou quinta-feira não posso decidir,
mas acordar como num dia de sábado eu posso sempre,
mesmo numa quarta-feira
ou num domingo com cara de segunda-feira.

Casciano Lopes


Também nascem ervas daninhas

O pensamento
é um campo fértil.
Os ouvidos plantam,
a palavra rega,
os olhos adubam.

... É preciso cuidado.
A terra não é boa
apenas quando produz,
mas no que poduz...
Escolha a semente e a poda.

Casciano Lopes


20.4.23

Guardador

Eu prefiro os excessos...
Agenda lotada, gavetas cheias de guardados, risadas escancaradas pela casa, saudade espalhada pelo chão e discoteca amontoada pelos cantos com suas profecias.
Tudo pelo vivido e nunca pelo que não me permiti...
Pra que nos dias de falta não me faltem pedaços de mim, afinal, prefiro lidar com a construção de armários; é mais fácil lidar com as sobras que com o vazio de não ter o que armazenar.

Casciano Lopes


Uma consulta

Eu vou guardar dos campos o que eles me deram de melhor e que gratuitamente me ofertaram quando parei pra confortar meus olhos olhando pra eles.
A médica hoje me disse: não há o que fazer, sua doença está provocando a perda da visão, vamos readaptar sua rotina a partir de agora; usar 3 óculos pras variadas distâncias, comprar um equipamento visual pra assistir tv, colocar uma cadeira na frente da tv (1 metro no máximo). Enfim...
Talvez hoje, eu compreenda melhor a contemplação, a observação de movimentos; talvez agora eu entenda porque sempre tive memória fotográfica e porque me demorei em algumas paisagens da vida e de pessoas.
No momento eu assimilo minha poesia como uma forma maior que o sentir, foi e é uma forma de ver e de dizer o que vi.
E se um dia, eu não puder mais dizer com esses olhos, a poesia dentro de mim me lembrará tudo que vi e assim verei sempre motivo de dizê-la.

Casciano Lopes


19.4.23

Apartamento

Nossas salas particulares possuem objetos desconhecidos por quem não se sentou em nossas poltronas e há tapetes que forram nosso chão, que desconhecem os pés de vizinhos.

Casciano Lopes


Olhar despudorado

Todos temos janelas; limpas e nem tanto, grandes e pequenas, altas e baixas, ao norte ou ao sul, todos temos...
Mas precisamos de mais, carecemos de olhos que se espichem, que se esguiem por frestas se preciso, que saibam derriçar cortinas e tenham o atrevimento de penetrar na vista...
Que saibam se debruçar em janelas, se dependurar nos batentes e que abusem da capacidade de ver o que não tem vergonha de se mostrar feito mundos nus.

Casciano Lopes


18.4.23

Âmago

Para além do coração,
que pulsa diuturnamente,
há feito ele,
um músculo muito maior e persistente
que põe no eixo nossa essência
e fundamenta nossa existência
no centro do Universo...
O 'Eu sou', uma potência.

Casciano Lopes


17.4.23

Orientado desorientado

Nesse plano terreno, há momentos tão duros que sentimos nossa própria ausência; como se cumpríssemos a travessia sem estar na embarcação.
São os valados da existência, onde tudo em volta vira altos montes e o caminho de tão pedregoso; exige dos pés um impulso impossível.
Quando o corpo se sente vencido e a espera perde a calma, quando as horas perdem o relógio de nosso pulso e o norte nos deixa decidir.
Momentos...
Em que dormimos para fugir e acordamos para buscar esconderijos para continuar dormindo; sonhando com o fim, pedindo o término e fugindo.
E é na completa falta de nós, de controle e poder de ação, que descobrimos que a navegação não teme as águas, não se assusta com a canoa pequena ou com o grande navio, ela teme muitas vezes é o marinheiro com seu senso de direção.
Por isso, algumas vezes somos desativados; e é testando destinos que se chega ao litoral, só porque perdemos a bússola.

Casciano Lopes


16.4.23

A fortaleza

Vivem os povos, a história, a ancestralidade, as culturas, os costumes, as palavras ditas, a sede de cada nação, a fome de cada língua... Cada tribo com seu homem e sua mulher, cada floresta com seu menino e seu grito, cada rio, cada bicho...
Belas e feras, fauna e flora... Vive!
Em cada um de nós, em cada tinta que coloriu nossa pele, em cada sangue que desenhou nossos olhos, em cada suor que banhou nossas veias, em cada dicionário que empunhou nossas mãos e em cada fé que fincou nosso chão...
Vive!
Vive em nós, somos todos tecidos dos que foram e vestiremos os que virão; e é assim que somos imortais, que nos tornamos eternos.

Casciano Lopes


14.4.23

Árvore da vida

A vida se espalha por caminhos, é impossível economizar... Nasce pequena e cresce quase que naturalmente; vai pedindo uma rega aqui, um adubo ali e de repente, fica frondosa ao ponto de sombrear quem passa. Como árvore estica seus braços, acolhe e em fração de anos abriga a própria vida... Aquela que existe e se define antes de qualquer interpretação ou definição.

Casciano Lopes


Um destino e o remetente

Escrever é uma forma de expulsar a tristeza, de amparar a alegria, de empacotar o encantamento e compartilhar da arte de passar pelo tempo nunca sozinho.
Tenho pra mim que escrever é isto: nunca estar só.
Ter, sem saber quem, com quem dividir, e mesmo assim, dividir as palavras molhadas, suadas, encharcadas de leituras desconhecidas, apenas pra se sentir acompanhado.

Casciano Lopes


13.4.23

Flor de Lotus

Podemos estar em calabouço, cárcere aterrado de paredes... Se o compromisso pessoal for com o bem, se o pacto for com o amor; a luz encontrará caminho afim de provocar iluminação, libertação.

Casciano Lopes