22.4.25

Haverá

Há de caber na terra de algum olhar,
meu mundo grande de pensamento,
há de haver cabimento
todo esse pensar.

Casciano Lopes

Sopro de água

Assim como o vento
traz sal quando chega do mar,
também eu,
trago marejados olhos
quando chego das despedidas.

Casciano Lopes

Caminho tarifado

A decisão costuma ter pedágio,
o resto da estrada é livre.

Casciano Lopes

O que não é resposta

A única pessoa voltou pra casa,
agora sou um único na multidão.
A busca não tem mais resposta,
e as certezas se misturaram com as perguntas...
atendem agora pelo nome de saudade.

Casciano Lopes

Vital

O olhar é o mais eficaz dos sentidos,
o único que desperta corpo e alma,
o que manda sentir o que o olho vê.
Sem o olhar,
a morte tem atestado antes de seu fato,
e a visão perde o argumento
porque não sabe de sentimento.

Casciano Lopes

16.4.25

Ando onda

Que a calma
nos ensine
a deixar
o mar ser mar.

Casciano Lopes

Para entender

A casa limpa e organizada, a comida pronta, as roupas lavadas e passadas, a dispensa abastecida, as rotinas diárias ticadas.
O asseio cumprido no banho, nas unhas e cabelos, a ida ao dentista concluída com sucesso, os boletos devidamente pagos, os ritos das manias cumpridos e os rituais que enxaguam a consciência de missão, executados.
Chega o fim...
Fica tudo no varal; a impermanência fala mais alto, a força cede seu lugar, as memórias passam a dizer sobre tudo o que se calou no tempo corrido das agendas pessoais, que não tinham nada de permanente.
As falas não ditas de uma vida gritam em meio à desordem da ausência, deixando claro que as doações importavam mais que os armários disciplinados com suas camisas impecavelmente dobradas, e que a fraqueza sempre foi parceira da fortaleza, e que o vento que soprou aquilo que mostramos em nossas portas, também soprará o que não foi permitido por desconhecimento de que vivemos suspensos, estendidos para sermos vistos passando; molhados e enxutos, alvos ou nem tanto, mas lavados de tempo num curto varal indisciplinado.

Casciano Lopes

13.4.25

De pouca fala

Eu sempre achei que não tinha o que dizer,
e então escrevi.
A dor cabe no papel porque grita sem alarde;
a minha e a do mundo.
Assim como a alegria,
que sem rir alto ainda sabe escrever.

Casciano Lopes

Ao final

Há trechos na minha história
que ainda me fazem doer,
há tantas palavras não ditas
que me fizeram emudecer,
e tanto por dizer!
Mas também há textos bem escritos,
ditos e lidos nos meus anos,
que me fizeram acender
a vontade da lida,
onde lido pra que minha vida caiba
numa palavra dita.

Casciano Lopes

Bem mais que segundos

Quando a poesia passar espremida entre o tempo corrido de cada um, que ela encontre assento para se demorar, que ela traga sílabas tônicas que consigam enfatizar a existência de uma alma, que os acentos consigam lembrar as horas, que sua missão seja principalmente a de ocupar minutos que permaneçam num mundo que tem pressa.
Ela precisa se perpetuar...
A poesia.

Casciano Lopes

11.4.25

Acredite

Nas madrugadas que tenho,
onde a luz do vizinho
reflete em minha sala,
elaboro os cuidados e penso...
Na vida, o que a gente transmite
vai muito além
do bem que quer ao outro.
Ninguém emite nada
que primeiro não tenha passado
por suas entranhas.

Casciano Lopes

8.4.25

Reza de onde vim

Lá onde nasce o milagre
Onde crescem as flores
Que rega o orvalho em prece
Que o sol de dia aquece
Pra que a lua de noite consagre.

É lá...
Que nasço desde que nasci.

Casciano Lopes


A sua maneira

No fundo a gente não se dá conta
que o mundo que vê é único,
que cada qual tem o seu particular.

Casciano Lopes

Um décimo de andar

Erguida a cabeça e
aguerrida a esperança.
Assim, sigo o possível,
o impossível...
deixo aos passarinhos,
que vez ou outra,
me alcançam na janela,
cantam, dançam, e
me salvam pelo colarinho.

Casciano Lopes

Meus guardados ainda não escritos

Uma imersão no caos não nos tira a dor, nos insere nela, nos torna humanos em sua profundidade, nos permite percorrer toda a extensão da humanidade, e extrair dela os motivos que a tornam possível.
Nem sempre as ferramentas que causam saídas ficam expostas à luz dos grandes palcos, vez ou outra precisamos procurá-las nos porões escondidos em nossas tragédias, onde descobrimos que só passando pelo drama seremos tão grandes quanto o próprio desequilíbrio que descemos pra resolver... sabendo da tristeza, aprendemos a fabricar alegria.

Casciano Lopes

5.4.25

Set

Eu sei que teoricamente a gente tem que se agarrar na gente mesmo.
Sabemos que tem momentos que mais parecem uma cena de ficção em que perdemos a direção; embora ocupemos a cadeira de diretor, e que o roteiro espera, de nossa mente criativa, uma solução... também sei.
Na prática gostaríamos mesmo é de muita gente rodando esse filme na locação que ocupa essa história chamada 'o dia a dia de alguém que parece forte', mas que é só um recorte frágil, esperando um cartaz de estreia numa sala cheia e alugada.
Sei.

Casciano Lopes

Risco de vida

Hoje, nem sei
como foi possível este tempo.
Em cada ano foi posta à prova
a ousadia que achei que tinha,
ainda ouso capacidades porque vivo,
e viver é pura audácia.

Casciano Lopes

Mergulho

Agito o raso
para que o profundo
me banhe.
Prefiro as braçadas
e as fundas tomadas de fôlego,
à falta de movimento
de quem só molha os pés.

Casciano Lopes

Paga em fuga

Se for preciso invento novamente a roda,
só pra circular pela lembrança de onde vim.
Uma volta por dentro é suficiente
pra colocar cada amanhã no seu lugar.
O hoje que se vê por fora,
dentro pede conta dos preços,
e não paga a carestia do que não foi passeado.

Casciano Lopes

Aqui junto do lá

Cada vez que te procuro
perto de mim,
o céu me lembra
que a distância é só um acaso,
um caso de ponto de vista.

Casciano Lopes

3.4.25

Poço içado

Todos temos sertões
guardados em nossa sede,
vasilhas vazias que cantam
e contam o tempo da cheia,
dispostas nas nossas prateleiras
de depositar reservas.
Cisternas habitam nossos quintais,
baldes sustentados por cordas
moram na espera das chuvas,
onde a cantoria das latas
ganhem o acompanhamento
da promessa de água cumprida.
Todos vivemos a solidão da seca,
onde retirantes cumprem seu papel,
mas também conhecemos o cântaro
e o cantil cumprindo seu destino cheio,
onde mais importa viver um dia...
que morrer em todos os outros.

Casciano Lopes

Ir olhando

De tudo resta
a rua pra olhar passar
o céu que mora cá no peito
olhar
e eu que ando essa rua
e voo esse céu
passando
passar.

Casciano Lopes

31.3.25

Dentro do que podemos

Há um lugar
que precisa
fornecer recomeços
e abraços de alívio...
Fica no interior
do mundo
que viemos pra ser.

Casciano Lopes

30.3.25

Tudo é jardim

Quem aprende o gesto
de segurar flores,
sabe segurar pedras,
não para atirá-las,
mas para construir
passagens entre canteiros.

Casciano Lopes

Coberto de estrada

Talvez seja o caso
de deixar o caminho te vestir,
e nunca mais a pele sofrerá
tentando ser uma viagem desconhecida.

Casciano Lopes

De tudo que lembro

A memória me resgata todo dia,
me ama quando mais preciso,
acaricia todos os meus lembretes
fixados onde não posso esquecer,
agrada com bom ânimo
minhas versões esquecidas
e promete ao meu querer que,
antes de dormir,
me contará a poesia da minha vida.
Ela ainda me cuida...
a memória de tudo que mora em mim,
me cura de faltas.

Casciano Lopes

28.3.25

Tapas da água

Não sei nadar,
ainda assim,
escolho a audácia
de provocar o rio.

Casciano Lopes

Descabido

Há dias
que amanheço eterno;
nesses,
crio mundos
que caibam o meu.

Em outros
acordo mortal;
nesses,
parecido com ferido de morte,
nada me cabe.

Casciano Lopes

27.3.25

Em uma estação... Somos.

Nós nos cuidamos...
A cada percalço ou manifestação de dúvida fingindo certeza, lá aparece 'um cuidando do outro'.
A impermanência é condição da vida, o imponderável é algo inerente a qualquer ser vivo; eu desconfio que uma árvore quando nasce, nada sabe das estações, mas ao saber, não se torna uma outra coisa, mantém sua essência de árvore. É assim que somos... Fragilidade e força no mesmo recipiente, convivendo com a incerteza, sem esquecer o endereço do outro que também convive com ela... A diferença é que vivemos abraçados, e assim, duplicamos a capacidade de ser resposta cheia de pergunta; perenes enquanto efêmeros.
Meio árvore, que ao ver de longe o aceno da ventania, finca o tronco na raiz para receber um sopro de tempo.

Casciano Lopes para Carlos Lopes

26.3.25

Descaminho

O aço forjado de dor
sabe o caminho

eu não

sou um mero narrador
no máximo seu vizinho

ele torna-se morador
eu não

Casciano Lopes

Tecitura

Se por um fio
decidir a vida
se encaminhar

por um fio

se ficar ou ir
a volta ou ida
saiba conversar

por um fio

falar com o fio
sem ferir ou partir
que por insistir

por um fio

quase divide você
mas é porque te viu
parte dele, o fio

por um fio

és o pano da lida
o que a linha pediu
pra saber te dizer

por um fio.

Casciano Lopes

Sabes quem?

Quem sabe a certeza nunca acabe,
quem sabe a dúvida nunca morra,
quem sabe vire prece a minha aparente calma,
quem sabe se dissipe no templo do meu temperamento
a fumaça de tudo o que produz o meu questionamento.

Casciano Lopes

24.3.25

Pra eu me encontrar num canto de mim

Basta um rádio de pilha
num canto da sala,
uma vitrola antiga
tocando um disco
de Elizeth Cardoso
no outro lado,
no outro canto.
Uma cristaleira
no corredor,
com louças sabedoras
do fino tempo,
um quadro desbotado
na parede
que não foi capaz
de apagar todas as saudades
da minha fina vontade
do que basta.

Casciano Lopes

21.3.25

Obrigado

Gratidão
não é dívida
e nem sabe
caminhar
na obrigação.

Casciano Lopes

Todo movimento

Tudo passa o tempo todo;
vale pra pessoas,
histórias
e pra vida,
que já nasce
com a promessa de morte.

Casciano Lopes

Barulho particular

Eu sei que tudo passa, mas cansa...
cansa perceber que não faz diferença
a titularidade de forte
que muitos me dão como um benefício,
sendo castigo a apatia dos gestos,
das palavras e do recuo que provoca silêncio...
isso sim,
provoca gritos dentro de mim.

Casciano Lopes

20.3.25

Origem, destino e intervalo

O céu da gente pode ficar de chumbo,
a meta de dourar a pele de alcances
pode ficar distante,
a noite pode durar fora de hora,
o dia longo pode esquecer de acordar a pressa,
a calma... pode.
A gente acalma,
porque entende a viagem mais que o veículo,
mas o bilhete da passagem às vezes viaja úmido
e amassado no bolso de guardar o suor da chuva.

Casciano Lopes

18.3.25

Daquilo que coube

A poesia é capaz
de pagar a conta
sem perguntar
quem consumiu

faz do esconderijo
de quem fugiu à fuga
uma filosofia de vida,
a poesia

coloca caligrafia
onde não cabe papel,
transforma o quarto,
a vista, e avista hotel.

Atrás de quem intuiu
a poesia.

Casciano Lopes

Daquilo que coube

17.3.25

Tato da dor e da alegria

O sofrimento não é ser quem você é, mas sim conviver com quem o outro é.
Circulamos com facilidade por nosso querer, nos debatemos por insistência na vontade alheia.
O fluxo interrompido pelo volume das nossas expectativas causa horários de pico em nosso trânsito, e interrompe o caminho pessoal da evolução.
Nossos semáforos, que aqui recebem os nomes de sentidos, ficam comprometidos se estiverem ocupados com as avenidas que não são nossas... a audição, por exemplo, só escuta as buzinas daquilo que não dirigimos, e a fala, se perde na falta de paladar da vida por falta da visão do mundo que viemos construir com nossas mãos.
Se tão somente entendermos a individualidade da missão encarnada, deixaremos de querer incorporar a vocação do outro como obrigação.

Casciano Lopes

14.3.25

Olhar cheio

Eu cresci assistindo a lua
se deitar no pasto da minha terra,
hoje sei porque
meu olhar se deita nela.

Casciano Lopes

13.3.25

Elementar

Cada dia eu me levanto no simples, moro e demoro no simples; até pra entender do que me basta. E se por rotina ainda me espanto com o que me falta, espero passar o que me afasta de mim e, lá pela hora onde tudo dorme, durmo na cama simples, onde findam as horas que meu relógio nunca soube marcar, porque aprendeu a contar o tempo riscando-o com carvão no meu pulso de poucas posses. Então durmo corriqueiramente, modestamente durmo.

Casciano Lopes

11.3.25

Partiu

Todo dia exige recomeço.
É necessário seguir, com ou sem medo, com ou sem endereço conhecido, e saber que, quanto mais cedo colocarmos os pés no caminho, mais ele não tarda a se mostrar.
É preciso saber viajar pela solidão dos sentidos; sabendo que haverá criança, jovem e velho na viagem dos sentimentos, e descobrir que todos eles vivem no nosso compartimento de viajante e se alternam na coragem, dando a possibilidade de sermos bem acompanhados.

Casciano Lopes

6.3.25

Estrada no balde

Quando as águas cantarem
lá pras bandas da montanha que não fui,
é preciso que eu saiba daquela melodia.
Que meus ouvidos estejam atentos,
pra que eu possa ouvir, e assim,
estar em muitos lugares,
mesmo sendo eu próprio,
um pequeno lugarejo,
tantas vezes sem água,
onde o único som,
seja o do estalar do sol
em minhas vasilhas vazias e esperançosas
daquela água que não fui ver,
mas que soube ouvir, e sabendo,
saberei ainda mais,
quando ela tocar por intuição,
minha pele de busca.

Casciano Lopes

E lá se vai

É conhecido o arquétipo da montanha...
Na subida; há espetáculos de casa cheia, promoções e prêmios, parcerias, relações disputam vagas, decisões são acompanhadas, visibilidade se confunde com conquista, toda a tenda que abriga a noite é facilmente compreendida... é subida.

É montanha, tem topo, comemorações estabelecem-se como bandeiras fincadas.
Tem a volta pra casa, descida, é montanha...

Os marcos ficam pelas encostas do outro lado, porque do lado de cá, juras não costumam caber no desembalo íngreme e sem freios das pernas, não dá tempo de prometer mãos em pedras tão roliças; onde nada se firma além da coragem quase sem dentes pra sorrir.

A planície chega, onde findam a alegria cumprida ou a tristeza interrompida, e aí, desce-se o corpo sozinho pela última vez, por mãos desconhecidas.

Casciano Lopes

3.3.25

Penso

Eu penso
que não preciso
impressionar ninguém.
Eu sim,
tenho que estar emocionado.
Custe o que custar.

Casciano Lopes

1.3.25

Perto de mim

Não sei lidar com algumas perdas ainda...
nem sei qual delas é mais significante.
Sei que o caminho talvez me ensine,
como sei que a árdua missão
é não me perder dele;
porque,
enquanto eu me sentir caminhante,
poderei vislumbrar destino,
e me saberei digno dele.

Casciano Lopes

28.2.25

Brisa quem sabe

Sou só um sopro
que procura
uma montanha pra ventar.

Casciano Lopes

Cartas de direção

Também não posso
conhecer um destino antes da viagem...
só quero chegar lá inteiro,
aqui dentro de mim,
onde moram todas as estradas,
os rios que buscam mares,
estes que entendem
de faixas de areia,
de terra firme.

Casciano Lopes

27.2.25

Quando você sangrou

Quando te vi no chão, me vi doendo e sem lugar de sentir tudo aquilo. Na demora de estancar aquela dor, aprendi tanto!...

Entendi a capacidade do amor quando cala a desesperança, só porque ela não entende nada de parar o medo.

Sei que excedo na esperança, mas naquele dia, quando amanheceu lá fora, tudo dentro de mim virou cedo, me senti capaz quando vi parar de correr pra longe de mim... você.

O amor sabe estancar o medo e cicatrizar os sustos da vida. A vida é espanto e para o bem dela, cuidado!

Casciano Lopes

Quando chega o trem na estação...

Desembarcam notícias,
malas com suas pessoas,
partem outras,
com muita ou pouca bagagem.
A viagem se inicia pra muitos,
finda pra outros,
bilheteiros começam o expediente,
outros cumprem a jornada
e voltam pra casa,
pombos arrulham sobre fios,
esbarram-se pessoas num quase encontro,
abraços acolhem e despedem-se
num gesto de apito da locomotiva.
Intervalos dividem o choro do sorriso;
e o soluço dos que não sabem falar,
grita ou cala o que não pode partir,
mas parte,
porque um dia chegou.
...
Isto não é sobre trens.

Casciano Lopes

Apartamento

Situações nos trancam do lado de fora...
passa o tempo do verniz dos tijolos,
assim como o viço dos nossos ossos,
nos instalamos em algum pretexto de varanda e,
aos poucos,
nos esquecemos de como era o lado de dentro,
passamos a aceitar com naturalidade
o inverso do verso,
o avesso do direito
e a morte que a exclusão provoca,
só que em vida.

Casciano Lopes

25.2.25

Negação não é opção

Sobretudo
gostar de me encontrar,
de saber que o espelho envelhece...
eu, se quiser, não.
Que tudo que anoitece
também amanhece,
que não pode viajar
ninguém que escolher parar,
que a melhor multidão
não é a que passou na minha porta,
mas a que se formou em mim
em cada encontro comigo mesmo.
Saber que,
do lado de dentro,
as rugas são eventos,
onde a solidão só existe
se eu não me apresentar todo dia
como alguém que se leva pra passear.

Casciano Lopes

24.2.25

Anfitrião

E se fores convidado pra rotina dos teus cômodos?
Pra estar na clausura de teus pensamentos,
pra viver entre tua sala sem baile
e tua cama sem hóspedes,
entre tua mesa sem extras e tua cozinha calada...
o que fazes?

E se houver fissura entre os quartos
que te impeçam a passagem?
Se tua lisura impedir o acesso
ao tráfego das avenidas,
se tuas portas exigirem braile pra se abrirem,
se tua cortina cansar de te anoitecer,
se a parede suada e sem leque do teu abrigo
te amanhecer antes do sol...
o que fazes?

E se o mundo em guerra se converter,
o teu, o que fazes?
Te implodes antes que te implodam
pra construírem um novo edifício digno de visitação,
ou, te reformas pra tornar-te
tombado pelo patrimônio histórico...
o que fazes?

Se fores teu único habitante, te fazes morador?

Casciano Lopes

Cheio de dedos

Não basta...
dormir na cama que o sono propõe,
banhar o suor no riacho
que cresceu junto com a gente,
comer do fruto da árvore
que nasceu no fundo da casa que vivemos
e que sombreia nossa fome de perto...
É preciso lamber o melado
que escorre da cana que plantamos,
fugir dos cágados que brincam
de teimosia nos nossos quintais,
usar a brasa pra desamassar
a roupa de cerimônia.
É preciso ajeitar os cabelos
com uma boa mão na ventania...
mão de medir o que venta.
Basta saber olhar a grama,
decidir se deita nela,
se poda,
se espera as formigas chegarem.
Ou, na espreita, esperar a vida te bastar.

Casciano Lopes

21.2.25

Castigo da compensação

Capazes de tolerar o dia,
porque ele promete a noite,
a segunda,
porque ela anuncia o sábado,
os meses,
porque eles antecedem a viagem...
somos capazes.
Ainda não dispomos de vaga na agenda
pra um feliz presente sem premiação,
pra um passado sem condecoração,
pra um amanhã sem recompensas...
ainda não somos capazes
de abraçar o agora.

Casciano Lopes

Escoriações e hematomas que provocamos

Ainda não somos eficientes na gratidão,
na visão do caminho,
no amor pela nossa caminhada,
no entendimento
de que os valores estão acima do preço,
de que as mãos que nos plantaram
nem sempre foram as nossas,
de que a alegria que brota todo dia
na sobra de esperança,
depende da coragem da nossa água,
mas também da rega
dos que estão dispostos ao nosso lado...
ainda não suficientes.

Casciano Lopes

20.2.25

Sinal de ocupado

Eu não vou atender a porta quando a falta de jeito bater, quando o telefone chamar incomodando meu modo de deter a pressa, em repouso, não vou atender. Nem quando o caos pretender pular a janela, sem roupas e com prazos estourados, sangrando em cacos de vidro o meu estado de 'sala', eu não vou inverter a calma ou perverter minhas promessas de que vou manter a capacidade do curativo, a sutura de estancar o que dói, em favor do silêncio que abomina o grito.

Casciano Lopes

18.2.25

De quem orquestra e orquestrados

Gosto também da dança sufi, os dervixes em transe absoluto me encaminham através da observação ao estado do pensamento do nada.
Gosto da música clássica, da ópera que sabe me dizer lágrimas, sem que os olhos consigam dizer palavras, diante da impossibilidade de desatenção perante o altar da música, onde quase se aprende a rezar de tanta devoção.
Gosto do canto gregoriano, de corais, e também dos étnicos alívios que me causam as danças tribais, as manifestações de humanidade em corpos tão cheios de divindade, que mais parecem deuses pintados de gente comum dançando.
Gosto das harmonias, de duetos, trios, quartetos e quintetos, que se unem para explicar a razão da emoção, que emocionam a dureza de tudo que exige explicação.
Por fim, gosto do que faz a vida, quando dança e canta para dizer que é uma festa estar dentro de um corpo e, vivendo como humano, poder experimentar o milagre dos santos, a sacralidade de brincar com os ouvidos, de ouvir o encontro dos ventos com as águas, da terra que pulsa com o fogo que estala.
...Tudo junto, numa partitura escrita na pele que recobre o espanto da alma.

Casciano Lopes

Piu suficiente

No silêncio em que busco a respiração, onde cada minuto dura a eternidade de um pulmão atrás de informação, onde tenho que calar a mente em estado de ebulição; ainda consigo ouvir o canto de pássaros suados, canto molhado no meu canto em combustão... só no silêncio.

Casciano Lopes

17.2.25

Estatura

Eu pretendi amar a vida do jeito de quem não desiste; ainda pequeno, e sem saber direito o tamanho do palco do mundo, mas bem orientado pela grande mãe que tive, de que representar o papel que vim desempenhar sem desistência, era tão importante quanto o próprio cenário... pretendi.

Quando ela já estava nos seus últimos dias, já em cuidados paliativos, foi perguntada sobre o que faltava, o que ela mais queria naquele momento; ela respondeu: - a cura.
Não desistir... Entendi.

E é na vontade de viver que mora o desafio que tenho pra vencer. Não é o tamanho dos problemas; que são grandes, eu sei, mas o meu, que é pequeno, e que sei disso fingindo não saber.

Casciano Lopes

15.2.25

Vivendo na casa de mim

Uma parte de mim não sabe quem é, outra ainda se espanta, se encanta, se acha impregnada de lugares nas esquinas da minha casa.
Onde moro, guardo, de forma organizada, as cartas que receberam todas as outras casas que morei. As tintas envelhecidas de tantas paredes, estão ainda residindo embaixo das cores que pintam o hoje, e me ajudam a lidar com o chão e telhado.
Até as fotografias espalhadas localizam meu tempo quando estou sem passado, pasmado em janela, feito lagartixa à espera; são imagens que restauram as portas emperradas da moradia, senão da casa que vivo, do corpo que moro.
Embora me pegue às vezes sem endereço, tenho em mim o que resgata o que fui: o que ditam minhas cortinas, quando brincam de me fechar e abrir, e o que escreve minha alma feito sala iluminada, quando olha os dependurados dos varais, e me lembra quem sou.

Casciano Lopes

14.2.25

Cartas de amor pedem

O amor obrigatoriamente
passa pela admiração,
é impossível amar sem se encantar,
sem se debruçar demoradamente
no espetáculo do outro.

Sem aplausos e cartazes
que digam elogios
é inviável qualquer texto,
e tudo não passa de encenação.

Casciano Lopes

Abusado

Tem que ousar
se quiser passar
pela via insalubre
da travessia do mundo.

Casciano Lopes

12.2.25

Último grau

Tudo muito simples:
Abraços longos,
sorrisos espontâneos,
conversas demoradas,
olhares largos,
ouvidos bons de escuta...
salas de poesias,
de recitais,
de saraus,
de música boa...
tudo no outro,
no teatro que deve ser o outro,
e nas minhas câmaras,
nas entranhas de minhas galerias,
na plateia que cala em si o espetáculo
para aplaudir em mim,
o simples.
Que de simples fica esperando
o extraordinário passar.

Casciano Lopes

Bem vivo

A respiração demanda trabalho e controle em todo ser vivo, mas é a inspiração que move a continuidade de tudo o que o vivente precisa pra sarar a relação entre o que se quer e o que se pode fazer. E é inspirando a coragem que a gente expira o medo, e segue avaliado como vivo porque respira o que explica a vida.

Casciano Lopes

Perto, média e longa distância

Os óculos da vida... aqueles que são solicitados pra cada situação; como a ocasião, pedem uma graduação... ajuste de foco, ponto de vista, equacionar a posição.
A depender das lentes por onde se olha, pode ser distante o outro lado da rua, da mesa, da história, e pode se aproximar uma nesga de lua, uma verdade nua e crua, ou manter segura uma profundeza de memória, mesmo que provisória.
É caso de aumentar ou diminuir distâncias... talvez seja assim, que dores em Osaka são sentidas aqui, e ali, na esquina do grito do meu prédio, não são absorvidas pelos andares, as dores.
Há sons que provocam tremores e ação, como um terremoto no Japão, outros, temores e rejeição, como faz tão bem, a isenção.
É só um caso de óculos...
Perto, média ou longa visão.

Casciano Lopes

9.2.25

A cura

Acendo o fogo com tudo
que soube me causar amargura,
as labaredas fazem desaprender o caminho...
a desventura.
A ossatura da alegria sai fortalecida
de cada tristura que dissolvo,
e assim, porque é brava a bravura,
estapeia a agrura cada vez
que ela vem me dizer de secura.

Casciano Lopes

5.2.25

Cama de rio

O rio não perde
a compostura no seu curso,
porque tem o leito
que sabe acomodar suas águas.

Casciano Lopes

4.2.25

Sorriso em caução

Quando isso tudo passar,
porque vai passar,
veremos o mesmo céu
das fotos de hoje,
nos olharemos como sempre fizemos
e nos riremos em azul.

Casciano Lopes

Tudo é proa a depender

Se precisar deixar o convés...
se convier o porão,
que seja pra se juntar aos suprimentos,
pra fortalecer as reservas.
Quando usamos o tempo nos aparando
pra servir de viés ao barco,
aumentamos a resistência do tecido das velas
pra quando ventar um revés.

Casciano Lopes

Hoje é coisa de se olhar

De tudo o que eu puder guardar,
quero primeiro o lugar da admiração,
porque sei que posso estar na contemplação
mais que na retaguarda cega da suposta proteção.
O que eu souber esconder em mim de bonito,
fará bons os meus olhos
diante do que for desprovido de beleza,
e eu não puder desviar a visão.

Casciano Lopes

3.2.25

Olhos mirados

Dá trabalho segurar um olhar...
Na tempestade ele tende a se agitar
e na calmaria a se dispersar.
Importante é não divagar na dúvida
e amparar no pedido de acolhida, segurar.
Um olhar dá trabalho,
de modo que temos tempos de desuso,
desse que virou coisa de gente de olhar,
de ver passar o trabalho que dá.
Tem olhar de perguntar,
de amansar fera e de calar o grito dos olhos,
seja quando ele vira água salobra,
ou quando vive a seca de não ter pra onde olhar.

Casciano Lopes

2.2.25

Intervalos

A mudança nasce com a gente... colos se alternam, as casas se alteram, os caminhos cobram pernas mais altas para distâncias maiores. São exigidos saltos, passadas largas capazes de consumir a quilometragem que separa o que nascemos do que morreremos. Talvez seja o que Carl Jung quis dizer com "nascemos originais e morremos cópias".
Corremos tanto para longe de quem nascemos, que nos perdemos no roteiro e daremos a isso, tantos nomes de consolo: sucesso, crescimento, mudança, 'vencer na vida'...
Quem sabe fosse apenas não abandonar quem nasceu verdade.

Casciano Lopes

Contaria

A vida reserva alegrias,

e a gente degusta cada uma delas,

porque todo dia

pode se tornar um...

'Era uma vez'.


Casciano Lopes

1.2.25

Poesia machucada

A gente floresce na margem da estrada, na beira do rio,
dividindo o fio que divide o lado de lá, do lado de cá,
na centrada flor do meio do jardim
ou na desequilibrada rosa dependurada na cerca fria.

Da palavra que sangra antes de ser dita só porque é poesia...
a vida de toda a gente é assim: castrada ou espalhada;
de ferida pra curada, basta um toque em curativo e eclode,
e pode sim, cruzar os lados que separam a dor, do perfume de flor.

Casciano Lopes

Mãe

Ela me ensinou fazer saudade...
e eu aprendi.

Casciano Lopes

30.1.25

Indiscrição

Já provei o constrangimento
de ser submetido ao capricho da grosseria.
Mas também já pude ver a gentileza
de mãos dadas com o cuidado,
me oferecendo mangas e mexericas descascadas.
Já senti o gosto que o sorriso provoca
quando a inibição é posta de lado
em nome da discrição que a sutileza exige.

Casciano Lopes

Beira de um resmungo

Tenho dias de canseira profunda,
quando o corpo já não dá conta e pede,
como quem perde a cadeira de sentar,
uma chance de esquecer-se de ocupar
o lugar na ladeira dos que perdem o freio
e não podem parar...
besteira, ainda bem que passa,
porque a vida é passageira.

Casciano Lopes

29.1.25

Voz de procissão

Que nunca nos falte,
mas que afete,
o amor..
Amém.

Casciano Lopes

Achado

Me deixo ser visto, quase um cisco provocador entre a vista e o que se vê.
Me faço imagem e figuro entre os achados, reclamo fotografia.

Casciano Lopes

27.1.25

Células que vi

Não sei em que momento, em que fase da lua, se na beira de sol que clareava a rua que nasci, se no fim do lamento que meu dia fazia cada vez que dormia pra chegar a noite, se em cada ano que surgia, enquanto outro findava pra dizer que eu envelhecia... não sei.
Não sei onde deixei o sonho ter mais tamanho que o miúdo acontecimento da minha pele, que esticava pra caber o corpo que crescia, e que todo dia, sepultava partes. Mas que todo dia sonhava pra ensinar nascer de novo o dia, outra pele, outro pedaço de corpo, pra morrer outra noite e outro dia... tudo se repetia.
Ainda hoje é assim, nasço todo dia cedo pra dar tempo de sonhar bastante antes de nascer a noite, quando dorme em mim a criança que vi nascer, porque crianças dormem todo dia.

Casciano Lopes

Propósito de medidas

Passamos a vida esperando
vias largas que nos caibam.
Sem perceber que nascemos
em um mundo inteiro,
morremos num quarto
que mal nos cabe.

Casciano Lopes

25.1.25

Em pele

Sou cacimba diante da seca,
úmida e encharcada
do suor em tempestade,
estirada em terra
e rachada de sol,
conservada em pele
pelo deserto da vontade...
Pele.

Casciano Lopes

Retratado

É a arte do retrato,
a de dormir nos retalhos
e acordar em lençóis intactos.
Tire retrato da vida,
porque na arte de viver,
ela te emoldura todo dia.

Casciano Lopes

Antes que nunca

Me abri para poucos.
Embora sempre gostei dos loucos, fiz poucos contatos, e tato mesmo, poucos.
Me fechei por anos, e quando reparei a porta estava emperrada, e as dobradiças enferrujadas ainda me dão trabalho. Ainda mais agora que a idade afana até as janelas e que os minutos comem a força dos braços...
Braços que não desistem e que aos poucos ainda se abrem, querendo escancarar as horas aos ponteiros dos que amam não ter relógio para marcar o quanto se faz de porta aberta.

Casciano Lopes

22.1.25

Pode ser em sol

Eu queria apenas ser canção
Daquelas que se repete

No som
Na estação de qualquer parada

No bom da vida de se lembrar
Apenas canção

Que faz fundo de memória
De história boa de contar

Nem precisa da televisão
Basta rádio de acompanhar

Canção apenas ser
De ninar sem acordar aqui

Só lá onde vive, quem sabe
Quem saiba me cantar.

Casciano Lopes

Papo de pirilampo, esperança e andorinhas

Talvez a gente se apegue demais aos sinais da natureza... na madrugada um pirilampo saltava no chão da minha cozinha, ao sair de casa pela manhã, uma esperança, toda verde, me esperava no vidro da porta do prédio, ao voltar da consulta, andorinhas cantavam e faziam algazarra do lado de fora da janela do meu banheiro, equilibrando-se pra caber no pequeno espaço... é, talvez.
Ainda assim, prefiro o toque suave de tudo o que só pede meu olhar, do que o solavanco do mundo duro que me rouba de mim por atrito.
Só quero cantar nos meus espaços, embora pequenos, saltitar por eles e esperançar nas suas portas, até que venha o resultado do que não eram apenas sinais, nem talvez.

Casciano Lopes

20.1.25

Ampulheta

De fato a pior dor,
não é aquela que tine na carne,
é a que ressoa na alma,
enquanto o instrumento que mede o tempo
aprende a dizer
que findou a areia dos pés antes deles.

Casciano Lopes

17.1.25

Sem fadiga

A sombra que refresca pode nascer de uma árvore...
que obedecerá ventos e estações,
mas poderá brotar dentro de nós...
e seguirá apenas uma consciência sossegada,
essa alivia as altas temperaturas de sermos humanos.

Casciano Lopes

Tem dado certo

Quando um amontoado de pensamentos
se juntam pra me dizer de fim,
calo cada um deles com o meu silêncio,
saio da calada reunião,
e em reclusão,
grito pra mim...
ainda não.

Casciano Lopes


Retrato descansado

É compensador desafiar o espelho,
que cansa de envelhecer junto com você,
e se perde tentando encontrar um resto de afago,
um rosto conhecido,
um amanhã possível
dentro de um ontem que prometeu isso.
Ah... é sim cansativo doer pouco,
porque é feio gritar.
Mas o riso faz esquecer o grito que,
desmemoriado, acha engraçado sorrir.

Casciano Lopes

Profundo desconhecedor

 


16.1.25

Mãos de sapatilhas

E porque tua mão
compensa meu ritmo
no baile da vida...
danço.

Casciano Lopes

Bem orientado

Há sempre anjos em nossa estrada,
uns pedem abrigo,
outros nos desviam do perigo,
há sempre.

Anjos que dirigem os sonhos,
que mobilizam o mundo pra gente passar,
que faz risonho o que era medonho,
há sempre.

Anjos que sabem fazer ponte,
limpar nossa vista pra ver o horizonte e,
que num processo de desmonte
nos aponta uma fonte de sobrevivência,

Há sempre...

Anjos encarnados ou não,
mentores que orientam a medicação da cura
pra que possamos cumprir a missão sarados,
há sempre anjos.

Casciano Lopes

Só ame

O amor é o que embala o presente, comumente o idealizamos e vira meta seu encontro, quando na verdade, ele pulsa primeiro em nossos corpos; antes dos órgãos vitais.
Nascemos porque precisamos amar... a vida antes dos trinta, sua experiência depois dos sessenta e sua eternidade em cada fração de tempo, viveremos para sempre; numa memória, numa singularidade que plantamos como flor, na força de nossa descendência e sua permanência.
O 'sempre' nasce conosco, rico em ancestralidade e repleto de possibilidades.
O amor sabe o caminho, a gente não. A única herança que deixamos aos nossos e o único bem que levamos daqui... é o amor.

Casciano Lopes

Pra cada braço

Desde menino, entre burquinhas e picuás,
aprendi ajustar a força.
É preciso ter medida pra empregá-la,
calcular o chão e largar a mão... brincante;
e na hora da tarefa merendeira,
olhar a estrada que falta mais que o ombro que pesa...
Caminhar só desmerece o caminho
se o caminhante não souber brincar com a força.

Casciano Lopes

Semelhantes

No outro eu me encontro é nas diferenças,
nas semelhanças eu me perco,
o que me identifica é o quanto eu consigo
adquirir do outro sem o roubar de si,
e o quanto me dou sem empobrecer.

Casciano Lopes

15.1.25

Todo molhado

Fui passear na beira do rio
e voltei enxaguado por ele.
Cheguei lá cansado do acesso
e suado em biqueira.
Fiquei logo de peito sem camisa,
que escondia o avesso,
e o deixei lavar o meu leito das mágoas.
Só voltei pra pele quando enxuta,
quando já não sabia o que na eira da vida
era terra ou pura água de ingresso no mundo,
onde o tempo todo me benze em rios 
feito bainha de rezadeira...
beira de rio.

Casciano Lopes

Olha o cuitelinho

O tempo não é nada mais que passarinho,
seu acontecimento é ninho,
dura um tantinho, aprende a voar e pronto...
voa e passa sobre nossas cabeças,
fazendo caminho do pensamento em burburinho,
e a gente, sozinho em desalinho
ou vizinho do que passa,
ensaia as asas para um dia... ir atrás dele.

Casciano Lopes

14.1.25

Me olho

De onde venho?
Os que vivem em mim, têm ciência de quem eu sou?
Porque não tenho em mim conhecimento algum de meus moradores e, tenho pra mim, que moram vilas inteiras em meus compartimentos de guardar quem sou; sem magoar minha personalidade tão brejeira que sonha com rua pacata e se parece com uma cidade inteira.
Meu povo, de inúmeras línguas, fala por carta com os distantes e poetiza as pedras do tempo para que todos entendam, e cochicham com os que moram perto quase que por aperto... mas onde cabem todos, apesar dos quilômetros que nos separam, há metros que nos aproximam, e talvez seja o poema a forma mais universal de fazer todos conviverem.

Casciano Lopes

Tátil

Enquanto houverem motivos espalhados no meu chão,
eu caminharei... tenho tantos!
Uns descobri cedo, outros ainda ontem
e alguns estão guardados nos amanhãs e longe da pressa,
a esses, devo curiosidade calma
que anda descalça pra reconhecimento.

Casciano Lopes

13.1.25

Eu repetiria pra mim

Frases que disse na infância.
Orações que formulei na adolescência.
Monólogos da minha juventude.
Eu repetiria...
Discursos de hoje,
construídos com campanhas ganhas e perdidas.
Eu repetiria no meu quarto de palanque e, na velhice...
quando e se vier,
quero lembrar das primeiras palavras ditas ainda menino,
e que guardaram meu vocábulo inteiro;
que me guiaram entre oradores e ouvintes.

Casciano Lopes

11.1.25

Vale para todas as viradas...

Talvez as mãos dadas sirvam à travessia, talvez os abraços sirvam o tempo, para segurá-lo nos braços, talvez os olhos encontrados e demorados uns nos outros sirvam para facilitar o encantamento de tudo o que não é visto, mas sentido com a retina da alma, onde se forma a imagem de tudo o que não podemos esquecer: o que tira a dúvida do lado de fora e planta a certeza do lado de dentro, de que a vida só se ganha no amor que vive de caso com o outro que cruza o mesmo mar e, que na outra margem, no lado de lá, a chegada é recompensada se bem acompanhada... sem talvez.

Casciano Lopes

Filho do rio

Um rio passou lá em casa em 1970, banhou o quarto e me deixou em colchão de palha, passado no talco e enrolado como que para presente. Não fosse a chupeta que calava o choro, o cheiro do chá de erva doce que vinha do fogão de lenha tomaria conta não só do berço e da casa, mas do rio inteiro, que avisava a vizinhança, com suas águas doces, que a temporada dos chás ganhava um novato.
Sei que nascido, chorei nove meses... rios.
E de lá pra cá, rios me orientam quando rio, quando choro ou quando calo as águas, porque não gosto de chá. Sigo o curso como eles o fazem, sem discutir o leito ou suas quedas, não importa se em colchão duro ou de palha mole, importa muito mais saber do dia que ele me confiou... rio.

Casciano Lopes

Mão única

Não somos ousados só quando caminhamos nossas escolhas,
mas quando nossas escolhas caminham a nossa carne
e viramos caminho das demandas,
sem aborrecer o acostamento que não ruma pra lugar algum.

Casciano Lopes