Decidi ser quem sou de propósito, deixar de morar no caos me ajudou nesse processo, é claro que todos os dias me espremo entre os vãos do que sou.
Tenho rachaduras em mim, sei que os traumas que me deixaram desconfiado, também me informaram de que eu não era tão seguro de mim quanto pensava, assim, fui criando passagens dentro dos meus muros, fui fechando acordos com tudo que me intimidava. Hoje, ainda não entendo porque as pessoas esperam algo de mim, mas compreendo melhor o que não posso esperar da minha própria humanidade; caótica por vezes, mas convencida de que a fortaleza também mora na minha fragilidade.
Tantas vezes quis perguntar, exclamar, pausar uma locução, criar intervalos numa oração... tantas vezes!
Finalizar uma situação, pontuar uma explicação, respirar um texto antes de ser dito, grifá-lo antes de ser escrito... quis tantas vezes!
Mesmo assim, ainda querendo o que sempre quis, me percebo reticências... cheio delas; e na fala pausada pela força bruta de um ato qualquer, eu, sem interpretação, vago feito papel vazio que cala.
Quando perder o lugar de fala, dos outros o interesse, o apetite, com a voz embargada mesmo que por desinteresse, acredite na duração do que não se perde... um rastro bem deixado não pode ser apagado, pisadas firmes são mais que passos,
é a ação sem dor, sem constrangimento ou ressentimento.
A casa limpa e organizada, a comida pronta, as roupas lavadas e passadas, a dispensa abastecida, as rotinas diárias ticadas.
O asseio cumprido no banho, nas unhas e cabelos, a ida ao dentista concluída com sucesso, os boletos devidamente pagos, os ritos das manias cumpridos e os rituais que enxaguam a consciência de missão, executados.
Chega o fim...
Fica tudo no varal; a impermanência fala mais alto, a força cede seu lugar, as memórias passam a dizer sobre tudo o que se calou no tempo corrido das agendas pessoais, que não tinham nada de permanente.
As falas não ditas de uma vida gritam em meio à desordem da ausência, deixando claro que as doações importavam mais que os armários disciplinados com suas camisas impecavelmente dobradas, e que a fraqueza sempre foi parceira da fortaleza, e que o vento que soprou aquilo que mostramos em nossas portas, também soprará o que não foi permitido por desconhecimento de que vivemos suspensos, estendidos para sermos vistos passando; molhados e enxutos, alvos ou nem tanto, mas lavados de tempo num curto varal indisciplinado.
Quando a poesia passar espremida entre o tempo corrido de cada um, que ela encontre assento para se demorar, que ela traga sílabas tônicas que consigam enfatizar a existência de uma alma, que os acentos consigam lembrar as horas, que sua missão seja principalmente a de ocupar minutos que permaneçam num mundo que tem pressa.
Uma imersão no caos não nos tira a dor, nos insere nela, nos torna humanos em sua profundidade, nos permite percorrer toda a extensão da humanidade, e extrair dela os motivos que a tornam possível.
Nem sempre as ferramentas que causam saídas ficam expostas à luz dos grandes palcos, vez ou outra precisamos procurá-las nos porões escondidos em nossas tragédias, onde descobrimos que só passando pelo drama seremos tão grandes quanto o próprio desequilíbrio que descemos pra resolver... sabendo da tristeza, aprendemos a fabricar alegria.
Eu sei que teoricamente a gente tem que se agarrar na gente mesmo.
Sabemos que tem momentos que mais parecem uma cena de ficção em que perdemos a direção; embora ocupemos a cadeira de diretor, e que o roteiro espera, de nossa mente criativa, uma solução... também sei.
Na prática gostaríamos mesmo é de muita gente rodando esse filme na locação que ocupa essa história chamada 'o dia a dia de alguém que parece forte', mas que é só um recorte frágil, esperando um cartaz de estreia numa sala cheia e alugada.