24.2.22

Terra acesa

Achei de uma delicadeza quando o céu acendeu de noitinha, lá no interior ficou clara a trilha e o matuto caminhou tranquilo entre vagalumes.
Quando as lâmpadas lá de cima se incandescem até a criação do pasto se orienta, o roceiro e seu fumo descansam num 'causo' mastigando o seu dia entre compadres.
O alpendre vira uma sala de espetáculo, o moinho de café num canto aplaude, o cachimbo faz silêncio na fumaça e até um sapo desavisado que passa pára pra escutar, ou será que é pra admirar?
E assim, se cospe com cuidado lá na roça, pra não incomodar ou apagar: o matuto, o café fumacento, o fumo de rolo e os pirilampos, lanterninhas da plateia.

Casciano Lopes

Primário?

Quem pode nos acusar de tempo?
Furtado
Esticado
Corrido
Esquecido
Escondido ou
Amontoado.
Se fomos sempre
autor e réu da ação.
Se ao final,
formos também os juízes de nós mesmos,
haverá pena ou só lamento?

Casciano Lopes

23.2.22

Conte até dez

Há que se procurar com jeitinho,
não fica tão na vista
e nem sempre ao alcance.
Muitas vezes brinca até comigo,
se esconde fingindo inexistência
e dá um trabalho!
Mas se encontrado,
abraça feito criança encontrada...
O melhor de mim.

Casciano Lopes

22.2.22

Muros de conserva

Não é que eu não tenha dores,
olhar lacrimoso
ou quintais salgados.
É que eles não me possuem
e como sou dado mais ao voo que à pista,
pairo...
Olho para o sal como conserva do corpo,
seja num canto de olho
ou num cercadinho de molho.

Casciano Lopes

Bate espelho

O que me distancia do que acredito
não é só a negativa de um povo,
meu reflexo se não cuido,
vive na disputa do prêmio
de ator coadjuvante.

Casciano Lopes

Em cena

Um dia o cenário
arrasta as cadeiras
e aceita o convite,
um dia o palco sobe o som
e o assoalho estende as mãos
e a plateia então,
dançará toda sua sorte
numa sapatilha de ponta.

Casciano Lopes

Posto e imposto

O que nos segrega muitas vezes
é a descrença na nossa força.
O que nos aparta da vitória
tantas outras vezes
é a recusa da luta.
O isolamento requer quase sempre
um enfrentamento
e as grades sempre cedem
a uma vontade de liberdade.

Casciano Lopes

21.2.22

Impensadas causas

O pensamento atinge
tão profundamente os corpos,
que abre passagens secretas
se tornando indetectável
à percepção de aparelhos.

Casciano Lopes

Montagem

Sempre levei para o dia
a convicção de que não estava pronto,
e no seu decorrer
e antes da noite fui me aprontando,
não pra ficar inteiro,
mas para no dia seguinte
juntar mais bonito
os pedaços de mim.

Casciano Lopes

Outros mais

Cada mundo tem seus mundos
e mundos particulares moram
em um mundo maior.

O humano
também é um complexo de mundos
que habita formas de criar mais mundos.

Casciano Lopes

Vidraça reverente

Da janela o mundo
confirma o que já sei...
O agora é a eternidade
e ele em todo tempo
acontece pra sempre.

Casciano Lopes

Quando

Um dia...
Até lá,
rio.

Casciano Lopes

20.2.22

Estar pode ser fora

Vou andar
Talvez pelos bares que estive
Ou naqueles que não provei
Mas que quis
Vou
Talvez cruzar as mesmas esquinas
Ou me sentar nas desconhecidas
Mas que iventei
Aliás
Um dia de inventar
Eu invento um jeito
De andar por fora da dor
E aí vou contá-la toda
Pra que ela me deixe
Mesmo que eu precise
Chorar em cima do garçom
Ou lavar a rua com a água que guardei
Vou parar de andar por dentro dela
Da dor
Esse ano eu vou
Ah vou!
Me pintar pra avenida
Como que pra apoteose
Nu
Sem ela
A dor.

Casciano Lopes 

19.2.22

Meta: Bateu ou apanhou?

Perdemos a alegria ao longo das obrigações. Tudo sério demais e nos colocamos dentro do que disseram ser legal: cumprir a meta. Um implante infeliz que nos dita por toda a vida como e quando falar, como e quando agir pra dar certo.
...e precisa dar! A meta.
Meta que não precisa ser alegre, que pra ser atingida precisa labuta, a escalada é bruta e parece que se você não luta, não merece alcançar e mesmo que tenha apanhado durante... Ah, estava fora da meta!
Justifica-se a tristeza e pronto.
Esquecemos de comemorar as pequenas conquistas do dia, nos furtamos da gargalhada com o que antes ríamos. Deixamos de vibrar com a paz, a nossa de espírito, só porque ela há muito foi trancada numa planilha de números. Deixamos de brindar o riso frouxo e fácil porque caiu em desuso, está fora de moda.
E vamos deixando sempre pras férias aquele arregaçar das cortinas, aquela ruga de risada, aquela camiseta larga e velhinha que só combina com caminhar descalço no quintal de chuva...
Sem percebermos,
o quintal seca quando a chuva passa, a traça corrói o que amarela em nossas gavetas, as cortinas pesam de poeira e as férias se e quando chegam, não trazem a ruga da risada; carimbam quase como uma agressão a da idade.

Casciano Lopes

Remo que navega a cura

A poesia me tirou do lugar de covardia.
Quando já estava quase convencido
de que não podia,
de que doía
e de que a vida era sobre se conformar...
Ela apareceu numa curva de águas;
aboliu tudo que eu pensava saber
e virou remédio,
aquele bom que dá valentia.
Me ensinou que a vida é também
sobre teimar e criar mandamentos
versados em tábuas que viram lei
e desde então,
sigo teimando
e subindo o rio
feito macio mesmo que duro o rio.

Casciano Lopes

16.2.22

Pode ser verde

O musgo agarrou-se e subiu pedras
e como alpinista alcançou o topo
do muro, que do seu mundo era cume.

Escalar muros,
decorar mundos,
e comemorar topos.
É mais sobre ser cume
Que chão de pedras.

Casciano Lopes

Abençoar é casa boa

O lugar da benção
é próximo ao da maldição,
a diferença está no custo da locação.

Depois do contrato

Se houver verba ou dela troco
Talvez não haja bolso em condição
para a desocupação.

Casciano Lopes

O centímetro de cada um

Eu não quero ser a régua do mundo,
não devo e nem posso.
Não me cabe e nem cai bem
unidades de medidas nivelando
ou impondo as lonjuras
de qualquer pensamento;
sejam os meus ou de outros.

O transbordamento dos potes
e suas dosagens
de quem quer que seja,
inclusive dos meus,
diz respeito mais a individualidade
de cada recipiente construído,
e essa construção, se não minha,
não trabalhei nela,
o que me desautoriza na medição...

E as minhas capacidades de armazenamento
também dispensam fitas métricas alheias
de quem não me ajudou a construir as comportas
que represam minha individualidade.

Casciano Lopes

15.2.22

Quantidade de viver

Pode ser que o sonho não caiba no sono,
no apartamento ou no corpo pouco...
Já pensou que expandir pode ser reduzir
para um cochilo sentado
a horizontalidade do descanso?

Casciano Lopes

Retrô

Só ando com jeito de porta antiga,
mas os batentes estão em bom estado.

Casciano Lopes

Um número de parceria

A magia não está só na cartola.
Na ponta da varinha de condão
tem um mágico e sem os três,
não acontece aplausos.

Casciano Lopes

Tranquila espera

Um dia a fera dormirá na relva
e o manso cântaro beberá sua água.
O rio que agita o leito
é o mesmo que serve de cama
para aplacar o sono da sede
e fornecer sonhos no seu profundo.

Casciano Lopes

Compacto intervalo

Quando olho
aprendo a ver
e toda vez que vejo
quase compreendo
a compressão de duas datas.

Casciano Lopes

Mais ou menos um... Dia

Quando amanhece
lá pras bandas da descrença,
recomeça a vontade de menino,
um botão de reinicar
apertado inconsequentemente
por dedos mínimos,
gera vontade
lá pras bandas de morar
e tudo vira crença de possível
lá pras bandas da coragem.

Casciano Lopes

Vida de ponteiros

Os relógios me recordam.
Automáticos,
de pilhas ou de corda,
me acordam.
Os de parede contam histórias,
como quando estou na estação.
Os de pulso cantam o pulso,
como quando estou em batimentos.
Os de bolso ouvem meus passos
e se animam no movimento do tempo.
Como se houvesse tempo,
e há,
para contar o que não vejo
e nem vi passar.

Casciano Lopes

14.2.22

Parlatório

O corpo é um evento
que inclui vaias e aplausos,
plateia com silêncio e alvoroço
como todo espetáculo tem.
Quem mora dentro só precisa
ser um bom mestre de cerimônia,
sabendo o palco de ação
como sagrado mesmo que de carne.

Casciano Lopes

Interpretar

Ainda não entendo,
mas talvez não seja o caso entender.
A não busca também é lugar de compreensão.

Casciano Lopes

Finalmente é de contar

Vim pra sorrir e fazer rir.
Pra contar uma história
sem saber começo ou fim.
E se por fim não concluir,
que eu tenha sido capaz
de transferir aos da minha aldeia,
a pena e o tinteiro de fazer do findo mundo
um lugar sem fim.

Casciano Lopes

Sarilho de agoras

Por hoje busco motivos
E por eles, só por hoje
Descubro cordas que puxam:
O balde, o poço, a água
e o homem molhado de funduras.

Casciano Lopes

13.2.22

Poema mergulhador

Poucos versos
Meus versos poucos
Poesia pouca
Forma pequena de dizer
Um poeta precisa ser pouco
O poema deve ser grande
Seu corte ser profundo
Se quem o diz é pouco
E pouco, não raso
Um único verso pode ser
Poema
Se a palavra mergulhar
E durar muito sem respirar.

Casciano Lopes

Posto de sentimentos bons

Se curarmos nos curamos
Se doarmos nos abastecemos
Se acolhermos nos protegemos
Se respeitarmos nos honramos
como humanos que divinos somos.

Casciano Lopes

Permuta ativa

A árvore
não questiona a formiga que passa,
não desapropria a que nela mora,
não açoita a que passeia por seu caule
e jamais interrompe a vocação dela,
de ser formiga.
Ao contrário,
sobrevive e sombreia o terreno,
oferece frutos,
compartilha galhos
e aprofunda raízes.
Passiva? Não.
É de sua natureza
e cumprí-la é sua vocação.

Casciano Lopes

Na viagem, a bagagem que não pesa

O que sustenta meu destino
mora numa casinha de madeira
que fica lá pras bandas da origem.

Casciano Lopes

Encontros

O sol que pede colo pras águas
corre o risco de se apagar em mar.

Casciano Lopes

Vila do entendimento

Não espero que entendam
o ipê com suas fases,
se nem a estrada compreende
seus arbustos da margem.
Espero que haja gratidão
na casa do vilarejo,
sem ela o vaso da mesa
fica vazio de flores e isso,
não posso entender.

Casciano Lopes

Barulho em quietude

Quando eu sentar,
devo aprender caminhar
por minhas distâncias.
Quando não puder andar,
preciso sentir o meu chão
mais profundo.
Do meu não,
tenho que arrancar
mesmo que aos gritos
o sim.
E assim,
o silêncio me guardará protegido
na caminhada dentro de mim
e calará minhas paredes.

Casciano Lopes

11.2.22

O menino e a jaca

Eu tinha qualquer coisa entre seis e sete anos,
e era uma das tarefas levar almoço pro meu pai na roça.
Coisa de quilômetros poucos,
só o suficiente pra aumentar o peso do picuá
(branquinho alvejado, nascido de sacos de mantimentos).
É, a estrada tinha costume de dar ganho de peso,
como se desse sustança ao alimento viajante.

Um dia comum, voltando do exercício,
os olhos correram pra um pé de jaca e criou vontade.
Me aproximei, pedi ao Henrique (filho do administrador),
se poderia levar pra casa a bitela jaca caída aos pés...
Minha mãe amava jaca, e eu as duas.

Consentimento dado e com a jaca doada,
precisei da força do contentamento pra suspender a exagerada.
Nesse dia o caminho fez a graça de se estender.
E se não fosse o cheiro da fruta animando os passos, nem sei...

Chegando próximo do alpendre da casa de alegrias,
gritei como quem vence uma guerra: - Mãeeeeeee!
...Talvez tenha sido meu primeiro contato com a canseira.

Mesmo orgulhoso que estava, pude ouvir minha mãe perguntar:
- Que é isso, menino?
Expliquei e continuei orgulhoso.
Foi quando recebi da grande Mestra a maior lição de todas,
afinal, tive a honra ne nascer de sábia e a jaca foi instrumento,
foi sabedoria em cima do suor menino.

Em tom de doutrina inflamada, disse:
- Você nem entra. Vai voltar agora no seu próprio rastro,
e vai devolver essa jaca no pé da árvore que achou. E se
o Henrique estiver lá ainda, vai se desculpar e dizer
que na sua casa tem o que comer e que foi feio o que fez.
Quando voltar a gente termina essa conversa... Arreda pé, menino!

Bom, a tal conversa dispensa prosa aqui.

A estrada e sua distância até hoje fazem o caminho da roça
dentro de mim... Só sei que jamais esqueci
o cheiro da jaca, o peso de um picuá e a conversa com a sabedoria.
Devo minha riqueza por ter quilômetros caminhados
entre ter honra antes de ter fome.

Casciano Lopes





Atuar o grande ato

Vive aqui
Um caminho com jeito de interior de cheiro
Uma luz parecida com folha ensolarada
Um jardim com aparência de cor na janela
Uma casa com um toque de gente doída de amor
Um céu de pisar no chão com pés de quem chove
Umas árvores castas que protegem o cenário...
E dentro dele, feito no palco,
sempre estreia alguém que como manhã, brilha.

Casciano Lopes

10.2.22

Santidade que canta

Quando meus cantos
me visitam e eu a eles,
entendo sobre prantos
e os mantos
que os guardam e enxugam.

Casciano Lopes

Homem lido

Agradecer me acrescenta
Reclamar me apequena.
Devo continuar preocupado em imprimir
em cada história que construir um livro bom de ler
e é só o que interessa... 
Uma boa leitura.

Casciano Lopes

Móvel em mãos

Ainda que nas gavetas se escondam os anéis,
carregarei com apreço os dedos,
afinal,
sem eles não poderei abri-las um dia.

Casciano Lopes

8.2.22

Ateliê particular

Depois dos anos me achei costureiro,
me encontrei pregando botões,
me deparei com remendos,
que me disseram que fui eu que fiz...
A agulha e a linha disseram.
Os panos e seus danos
deram lugar ao ofício
e eu todo dia acredito, 
desde então,
me sento numa varanda que vive em mim
e alinhavo os ganhos.

Casciano Lopes

Ando namorando

Foi de caso com a falta
que descobri a sobra.
Foi namorando a aspereza
que casei com a delicadeza.
E amante da certeza de coisa alguma,
fui pego pela dúvida
de saber das perguntas
nenhuma.

Casciano Lopes

7.2.22

Em algum lugar de ventar

Quando olhei, vi passar o vento.
Sentou-se em um banco da praça
e me esperou.
Me envolveu no caminho e virou ventania,
dispersou toda minha concentração
e deslocou o que eu sabia de mim mesmo.

Casciano Lopes

Águas minhas

Quando resolvo escalar minhas encostas,
cruzar minhas pontes
e me esgueirar nas passagens estreitas
de meus pensamentos,
há um estímulo que motiva a aventura
e desperta a curiosidade...
Um rio desconhecido que me corta inteiro,
também sou eu, o rio
o rio que me margeia quer que eu salte
e eu nele desemboco.

Casciano Lopes

E olhei de novo, quando vi a partida de mãos dadas com a chegada

Agradeço por ter na despedida
a oportunidade da gratidão.
É quando olhei uma última vez
que entendi de permanência.
E quando abracei pra ficar,
nem sabia
e estava reverenciando a eternidade.
Ficou...
O verbo que regeu a frase,
os dias e a impermanência toda.
O tempo do caminho,
as manhãs, tardes e noites
do telhado de viver encontros.

Casciano Lopes

6.2.22

Ares de pilotar

Ontem poderia construir aviões.
Hoje sou construtor de céus.
A idade me trouxe a ideia
de que os campos abertos para decolar,
são mais importantes que as aeronaves
e pistas pesadas sem teto para voar.

Casciano Lopes

4.2.22

Papo de tempo

A tartaruga e o coelho conversavam
quando foram interrompidos pelos ouvidos,
quando um começava ouvir,
o outro findava a frase.
Acordaram o silêncio então,
pra que ouvissem sem dizer
o que não cabe na audição.

Casciano Lopes

Planeta homem

Seja destemido.
Firme,
honesto com a longitude
das perdas
sem perder a lealdade com a latitude
dos ganhos.
Porque no final da reta
o equilíbrio das coordenadas
é que sustenta a esfera humana.

Casciano Lopes

Fôlego contido

Assim tão perto
Assim tão quente
Assim tão dentro
O pulsante
O circulante
O instante
Assim um sopro
Latejante hálito
Vivente.

Casciano Lopes

A medida calada

As maiores distâncias
estão entre o olhar e a palavra,
é preciso silêncio para ver
e só depois calar o caminho com boas falas.

Casciano Lopes

Sobre a cabeça fora d'água

Ao médico a gente vai
como ao mar...
Como quem sabe nadar,
sem esquecer a boia.

Casciano Lopes

Dorme, mas iluminado

Ainda é caminho acender a luz.
Descansar sim,
mas o despertar requer a ação
de levantar e tocar o interruptor.

Casciano Lopes

2.2.22

Toque de aura

Vou caminhar na minha calma,
não que eu seja calmo,
mas a alma não pode ser brava
e então pede pro corpo, calma.

Casciano Lopes

Sorrir quando...

É sobre rir pra vida
 E não da vida
Sobre penar e planar
e contar a graça
É caminhar
Mas também parar
Pairar.

Casciano Lopes 

Ainda ontem sabia e hoje?

Vejo tanto no espelho!
Um tempo que se deixa fotografar
Uma camisa xadrez de menino que sabe contar
Uma estrada que sabe viajar
E um homem que sabe responder
muitas vezes sem saber perguntar.

Casciano Lopes

O nada e eu

Pra entender de completude
é preciso na vastidão de coisa alguma
ter atitude.

Casciano Lopes