3.12.24

Milagre da pergunta

Gosto de me hospedar onde mora a dúvida, assim, com a convivência vou entendendo que nada nesta vida garante a certeza; que os dias intercalam temperaturas, que há manhãs ensolaradas que carregam tardes chuvosas, que tardes nubladas despedem-se para que noites estreladas ocupem o palco, que semanas difíceis são precedidas por feriados de santos, que pessoas nascem como motivos, enquanto outras morrem por falta deles no mesmo dia.
A vida é um 'não sei' cheio de certezas.
Não saber, achando que sabe, traz a opinião; sei disso... Porém a dúvida me faz buscar a resposta, e encontrá-la não deve ser a meta, deve ser o motivo que me tira da inércia para a ação.

Casciano Lopes

Por fim, que eu saiba ser etéreo

Que eu saiba calar
quando passar o vento.
Que eu saiba me despir
quando a chuva bater na porta.
Que eu saiba controlar a febre
quando for vizinho de um vulcão.
Que eu saiba nascer todo dia
e brotar se precisar de chão.
Que eu saiba ser forjado
sem perder o fio da lâmina.
Que eu saiba durar o necessário,
feito madeira que se empresta aos anos.
Amém.

Casciano Lopes

A gente quer ficar

Na vida e que ela não se acabe.
Nas pessoas e que elas não se percam de nós.
Nas festas e que elas não saibam findar.
No riso e que ele desconheça o seu contrário.
Na melhor idade e que saibam disso
todos os sentidos, a memória e os joelhos.
No fundo queremos motivos pra negociar...
porque a gente quer ficar.

Casciano Lopes

Onde tudo vira mar

O mar açoita a rocha e segue seu caminho, lambe a areia da praia, quebra ondas e decora a orla; não porque seja perverso ou prepotente, mas porque é mar cumprindo sua missão.
A rocha também está lá nas encostas cumprindo sua tarefa, seu caminho e ao que se destina... resignada.
Também somos um dever, uma realidade no cenário... um pedaço de areia, um braço de mar, uma paisagem em movimento, uma 'pedra fundamental' na construção da vida em curso.

Casciano Lopes

Trocamos olhares

Acho que fiz o curso de cabeleireiro só pra cuidar dos cabelos dela.
Me formei em 2010 e foram 10 anos cuidando daqueles cabelos...
Ela nunca tinha ido a um salão, feito um penteado ou coisa assim.
Por uma década, pintei, hidratei, cortei, escovei, fiz penteados que nós dois amávamos os resultados.
Tivemos muita prosa naquela cadeira, no tempo das colorações. Muita troca.
Em 2020, quando já não mais pintava seus prateados fios, fiz seu último corte... me permitiu cortar bastante além dos poucos centímetros de sempre. Concordamos em fazer um 'batidinho na nuca', vulgo 'escovinha', pra não precisar raspar por conta do processo quimioterápico; ela e eu nos doeríamos sem medida e além da causa, dado o estado dela, acordamos manter toda a nossa cumplicidade naquele último corte.
Dessa vez não trocamos uma única palavra, apenas consentimentos.
Fiz com ela ali uma viagem ao passado, devolvi aquela imagem da mãe de minha infância, de cabelos curtinhos e vaidosa... quando terminei o corte, levei a cadeira de rodas dela diante do espelho e, ali, nos olhamos profundamente nos olhos refletidos e nos entendemos mais uma vez. Depois disso tivemos poucos últimos olhares de um pro outro.
Mãe... de lá pra cá, nunca mais cortei um cabelo.

Casciano Lopes