28.2.25

Brisa quem sabe

Sou só um sopro
que procura
uma montanha pra ventar.

Casciano Lopes

Cartas de direção

Também não posso
conhecer um destino antes da viagem...
só quero chegar lá inteiro,
aqui dentro de mim,
onde moram todas as estradas,
os rios que buscam mares,
estes que entendem
de faixas de areia,
de terra firme.

Casciano Lopes

27.2.25

Quando você sangrou

Quando te vi no chão, me vi doendo e sem lugar de sentir tudo aquilo. Na demora de estancar aquela dor, aprendi tanto!...

Entendi a capacidade do amor quando cala a desesperança, só porque ela não entende nada de parar o medo.

Sei que excedo na esperança, mas naquele dia, quando amanheceu lá fora, tudo dentro de mim virou cedo, me senti capaz quando vi parar de correr pra longe de mim... você.

O amor sabe estancar o medo e cicatrizar os sustos da vida. A vida é espanto e para o bem dela, cuidado!

Casciano Lopes

Quando chega o trem na estação...

Desembarcam notícias,
malas com suas pessoas,
partem outras,
com muita ou pouca bagagem.
A viagem se inicia pra muitos,
finda pra outros,
bilheteiros começam o expediente,
outros cumprem a jornada
e voltam pra casa,
pombos arrulham sobre fios,
esbarram-se pessoas num quase encontro,
abraços acolhem e despedem-se
num gesto de apito da locomotiva.
Intervalos dividem o choro do sorriso;
e o soluço dos que não sabem falar,
grita ou cala o que não pode partir,
mas parte,
porque um dia chegou.
...
Isto não é sobre trens.

Casciano Lopes

Apartamento

Situações nos trancam do lado de fora...
passa o tempo do verniz dos tijolos,
assim como o viço dos nossos ossos,
nos instalamos em algum pretexto de varanda e,
aos poucos,
nos esquecemos de como era o lado de dentro,
passamos a aceitar com naturalidade
o inverso do verso,
o avesso do direito
e a morte que a exclusão provoca,
só que em vida.

Casciano Lopes

25.2.25

Negação não é opção

Sobretudo
gostar de me encontrar,
de saber que o espelho envelhece...
eu, se quiser, não.
Que tudo que anoitece
também amanhece,
que não pode viajar
ninguém que escolher parar,
que a melhor multidão
não é a que passou na minha porta,
mas a que se formou em mim
em cada encontro comigo mesmo.
Saber que,
do lado de dentro,
as rugas são eventos,
onde a solidão só existe
se eu não me apresentar todo dia
como alguém que se leva pra passear.

Casciano Lopes

24.2.25

Anfitrião

E se fores convidado pra rotina dos teus cômodos?
Pra estar na clausura de teus pensamentos,
pra viver entre tua sala sem baile
e tua cama sem hóspedes,
entre tua mesa sem extras e tua cozinha calada...
o que fazes?

E se houver fissura entre os quartos
que te impeçam a passagem?
Se tua lisura impedir o acesso
ao tráfego das avenidas,
se tuas portas exigirem braile pra se abrirem,
se tua cortina cansar de te anoitecer,
se a parede suada e sem leque do teu abrigo
te amanhecer antes do sol...
o que fazes?

E se o mundo em guerra se converter,
o teu, o que fazes?
Te implodes antes que te implodam
pra construírem um novo edifício digno de visitação,
ou, te reformas pra tornar-te
tombado pelo patrimônio histórico...
o que fazes?

Se fores teu único habitante, te fazes morador?

Casciano Lopes

Cheio de dedos

Não basta...
dormir na cama que o sono propõe,
banhar o suor no riacho
que cresceu junto com a gente,
comer do fruto da árvore
que nasceu no fundo da casa que vivemos
e que sombreia nossa fome de perto...
É preciso lamber o melado
que escorre da cana que plantamos,
fugir dos cágados que brincam
de teimosia nos nossos quintais,
usar a brasa pra desamassar
a roupa de cerimônia.
É preciso ajeitar os cabelos
com uma boa mão na ventania...
mão de medir o que venta.
Basta saber olhar a grama,
decidir se deita nela,
se poda,
se espera as formigas chegarem.
Ou, na espreita, esperar a vida te bastar.

Casciano Lopes

21.2.25

Castigo da compensação

Capazes de tolerar o dia,
porque ele promete a noite,
a segunda,
porque ela anuncia o sábado,
os meses,
porque eles antecedem a viagem...
somos capazes.
Ainda não dispomos de vaga na agenda
pra um feliz presente sem premiação,
pra um passado sem condecoração,
pra um amanhã sem recompensas...
ainda não somos capazes
de abraçar o agora.

Casciano Lopes

Escoriações e hematomas que provocamos

Ainda não somos eficientes na gratidão,
na visão do caminho,
no amor pela nossa caminhada,
no entendimento
de que os valores estão acima do preço,
de que as mãos que nos plantaram
nem sempre foram as nossas,
de que a alegria que brota todo dia
na sobra de esperança,
depende da coragem da nossa água,
mas também da rega
dos que estão dispostos ao nosso lado...
ainda não suficientes.

Casciano Lopes

20.2.25

Sinal de ocupado

Eu não vou atender a porta quando a falta de jeito bater, quando o telefone chamar incomodando meu modo de deter a pressa, em repouso, não vou atender. Nem quando o caos pretender pular a janela, sem roupas e com prazos estourados, sangrando em cacos de vidro o meu estado de 'sala', eu não vou inverter a calma ou perverter minhas promessas de que vou manter a capacidade do curativo, a sutura de estancar o que dói, em favor do silêncio que abomina o grito.

Casciano Lopes

18.2.25

De quem orquestra e orquestrados

Gosto também da dança sufi, os dervixes em transe absoluto me encaminham através da observação ao estado do pensamento do nada.
Gosto da música clássica, da ópera que sabe me dizer lágrimas, sem que os olhos consigam dizer palavras, diante da impossibilidade de desatenção perante o altar da música, onde quase se aprende a rezar de tanta devoção.
Gosto do canto gregoriano, de corais, e também dos étnicos alívios que me causam as danças tribais, as manifestações de humanidade em corpos tão cheios de divindade, que mais parecem deuses pintados de gente comum dançando.
Gosto das harmonias, de duetos, trios, quartetos e quintetos, que se unem para explicar a razão da emoção, que emocionam a dureza de tudo que exige explicação.
Por fim, gosto do que faz a vida, quando dança e canta para dizer que é uma festa estar dentro de um corpo e, vivendo como humano, poder experimentar o milagre dos santos, a sacralidade de brincar com os ouvidos, de ouvir o encontro dos ventos com as águas, da terra que pulsa com o fogo que estala.
...Tudo junto, numa partitura escrita na pele que recobre o espanto da alma.

Casciano Lopes

Piu suficiente

No silêncio em que busco a respiração, onde cada minuto dura a eternidade de um pulmão atrás de informação, onde tenho que calar a mente em estado de ebulição; ainda consigo ouvir o canto de pássaros suados, canto molhado no meu canto em combustão... só no silêncio.

Casciano Lopes

17.2.25

Estatura

Eu pretendi amar a vida do jeito de quem não desiste; ainda pequeno, e sem saber direito o tamanho do palco do mundo, mas bem orientado pela grande mãe que tive, de que representar o papel que vim desempenhar sem desistência, era tão importante quanto o próprio cenário... pretendi.

Quando ela já estava nos seus últimos dias, já em cuidados paliativos, foi perguntada sobre o que faltava, o que ela mais queria naquele momento; ela respondeu: - a cura.
Não desistir... Entendi.

E é na vontade de viver que mora o desafio que tenho pra vencer. Não é o tamanho dos problemas; que são grandes, eu sei, mas o meu, que é pequeno, e que sei disso fingindo não saber.

Casciano Lopes

15.2.25

Vivendo na casa de mim

Uma parte de mim não sabe quem é, outra ainda se espanta, se encanta, se acha impregnada de lugares nas esquinas da minha casa.
Onde moro, guardo, de forma organizada, as cartas que receberam todas as outras casas que morei. As tintas envelhecidas de tantas paredes, estão ainda residindo embaixo das cores que pintam o hoje, e me ajudam a lidar com o chão e telhado.
Até as fotografias espalhadas localizam meu tempo quando estou sem passado, pasmado em janela, feito lagartixa à espera; são imagens que restauram as portas emperradas da moradia, senão da casa que vivo, do corpo que moro.
Embora me pegue às vezes sem endereço, tenho em mim o que resgata o que fui: o que ditam minhas cortinas, quando brincam de me fechar e abrir, e o que escreve minha alma feito sala iluminada, quando olha os dependurados dos varais, e me lembra quem sou.

Casciano Lopes

14.2.25

Cartas de amor pedem

O amor obrigatoriamente
passa pela admiração,
é impossível amar sem se encantar,
sem se debruçar demoradamente
no espetáculo do outro.

Sem aplausos e cartazes
que digam elogios
é inviável qualquer texto,
e tudo não passa de encenação.

Casciano Lopes

Abusado

Tem que ousar
se quiser passar
pela via insalubre
da travessia do mundo.

Casciano Lopes

12.2.25

Último grau

Tudo muito simples:
Abraços longos,
sorrisos espontâneos,
conversas demoradas,
olhares largos,
ouvidos bons de escuta...
salas de poesias,
de recitais,
de saraus,
de música boa...
tudo no outro,
no teatro que deve ser o outro,
e nas minhas câmaras,
nas entranhas de minhas galerias,
na plateia que cala em si o espetáculo
para aplaudir em mim,
o simples.
Que de simples fica esperando
o extraordinário passar.

Casciano Lopes

Bem vivo

A respiração demanda trabalho e controle em todo ser vivo, mas é a inspiração que move a continuidade de tudo o que o vivente precisa pra sarar a relação entre o que se quer e o que se pode fazer. E é inspirando a coragem que a gente expira o medo, e segue avaliado como vivo porque respira o que explica a vida.

Casciano Lopes

Perto, média e longa distância

Os óculos da vida... aqueles que são solicitados pra cada situação; como a ocasião, pedem uma graduação... ajuste de foco, ponto de vista, equacionar a posição.
A depender das lentes por onde se olha, pode ser distante o outro lado da rua, da mesa, da história, e pode se aproximar uma nesga de lua, uma verdade nua e crua, ou manter segura uma profundeza de memória, mesmo que provisória.
É caso de aumentar ou diminuir distâncias... talvez seja assim, que dores em Osaka são sentidas aqui, e ali, na esquina do grito do meu prédio, não são absorvidas pelos andares, as dores.
Há sons que provocam tremores e ação, como um terremoto no Japão, outros, temores e rejeição, como faz tão bem, a isenção.
É só um caso de óculos...
Perto, média ou longa visão.

Casciano Lopes