26.2.24

Há outro de mim

Ás vezes é preciso transpor quem eu acredito ser,
pra me encontrar, conversar comigo e remover o obstáculo
que não me permite envergonhar-me, causando mudanças.

Casciano Lopes

Arcanos

Vou remendando os danos, o esgarçado dos anos feito costureira os panos. Por mais que pareçam insanos os retalhos ou levianos os vestidos, sigo reconstruindo o que acredito, porque não estou aqui para agradar 'gregos e troianos', vou me vestir da minha obra e sei que sou só mais um entre humanos, que de remendos e em costura passa; não importa quantas vezes me vista diante da linha ou quantas me desvista diante da agulha... só um alguém que, se colocado com os soberanos, prefere os profanos em nome da nudez pronta pra máquina de costura do tempo.

Casciano Lopes

E a escuridão também era caminho de estrelas

Quero da boca o beijo, da lua a rua inteira, da beira a goteira, do lugar a paz e da madrugada uma noite de desejo.
Quero completo, não uma parte, sem anestesia o corte, pra doer e sarar em mim um céu, onde morre lua pra nascer sol, onde chove, mas também venta nas nuvens pra azulejar o voo das gaivotas, até das que voam em mim quando quero tudo, sendo só uma pista sem aviões.

Casciano Lopes

Pautados dançantes

Sei que o agito das águas põe a embarcação em serventia, sei que toda a construção testa a eficiência de seus feitores, sei que a boa calda exigirá também um bom doceiro, assim como sei que o mundo grande colocado na pequena rua que moro pedirá morador em movimento...
Pra tudo que gira ou dança feito a inspiração, será cobrado música e o que ela sabe dar como prova de vida... corpos em andamento.

Casciano Lopes

23.2.24

Verdade, faço questão

Sob que condições? A que preço e em que termos?
Ninguém quer saber, é bem mais fácil achar que o jardim brota do seu estado de flor ou coisa assim.
A meta sempre foi ser honesto com os outros e comigo mesmo, não fingir o que o espelho denunciaria. Nunca procurei a riqueza perene feito sabão em pedra, quis a brancura dos tecidos, esvoaçantes e sem vergonha alguma dos varais.
Quis não dever nada, quis plantar e, ao passear por canteiros, quis construir aromas como numa cozinha, sabores. Nunca pretendi roubar uma flor sem saber do seu caso de amor com o jardineiro e, por fim, quis a vida desprovida das regras e das grandes posses, quis pequeno no que me bastava e grande no que precisava dividir; amor por mim pra ter, pra ser o dono da imagem e do retrato ser mais que fotografia, ser história que valha a pena contar.

Casciano Lopes

18.2.24

Hóspedes e as chaves

Se dependuram no meu pescoço, me abraçam, me cheiram e abusam do meu estado frágil.
Puxam a cadeira, sentam à mesa, conversam com meus talheres, comentam os livros que leio e até me deixam em casa quando me querem por perto.
Bagunçam minhas aptidões pra liberdade, me sentenciam a estar só, me tornam econômico no sentimento dos abraços e me guardam só pra que eu pense ser possuído e possuidor...
Memórias... Póstumas e nem tanto, porque vivem em mim, dividindo quem eu penso ser, entre quem fui e quem nem sei se um dia serei, por causa delas, lembranças que moram comigo desde que se tornaram compulsórias.

Casciano Lopes

Fogo cruzado

Firmei velas nos meus lençóis pra não esquecer da afinação que seus fios produziam quando roçavam nossos corpos quentes, assim meio úmidos querendo qualquer coisa entre enxaguar o calor dos tecidos e apagar o ardor da chama.

Casciano Lopes

Arranjo de uma menina só

Então se levantou, arranjou vaso e colocou mesa, perfumou-se como se fosse ao mercado das moças, tomou posse de um cálice de tinto e se deixou ser paga por suas vontades na poltrona de canto. Não fossem suas ideias falantes seria um cale-se, pois o silêncio da sala nada pode com os gritos das flores.

Casciano Lopes

17.2.24

Saída pra buscar tintas

Dentro de onde não houver mais nada e ninguém, deverá haver ainda uma porta... você com a capacidade de carregar na mala o que juntou; olhos, mãos e pincéis de acreditar as telas dos corredores novos.

Casciano Lopes

Achar e depois achar de novo

Dormir é busca, acordar é encontro.
Trabalhar é busca, descansar é encontro.
Chorar é busca, sorrir é encontro.
Abraçar é busca, ficar é encontro.
Nascer é busca e viver é a arte do encontro.

Casciano Lopes

16.2.24

Contratempo

Em corpo de morar estamos todos,
querendo ser andarilhos
de um mundo que pede endereço fixo.

Casciano Lopes


Só porque vivo, ainda quero

Eu quero o direito de errar manifestado na tentativa do acerto, quero abraçar forte pro medo sufocar e depois andar sem rumo só pra fazer do destino uma dúvida capaz de realizar, eu quero ainda ver chegar na minha descrença um motivo de altar e no meu desespero um milagre pra contar. Quero só entender o choro pra poder explicar o riso.

Casciano Lopes

De tulipas

Talvez se houvessem flores nas palavras,
o silêncio não incomodaria,
pois o perfume exalado calaria a fala sem dor.

Casciano Lopes

15.2.24

Coador em flor

Quando me sento na minha varanda imaginária e degusto meu café imaginário de fazenda, estou de prosa com meus ancestrais e eles adubam a minha imaginação pra que eu floresça no manacá do quintal.

Casciano Lopes

Cochilos

Diante da demora feito sonho, sou só um menino com pressa feito pesadelo. Sonho demais e tenho agravos causados por isso, sou crédulo e quando me assalta o pesadelo, nunca estou pronto pra acordar sem sobressaltos; acabo vítima da incredulidade, desperto todo arranhado, e de novo, sonho acordado e até cochilando, porque não perco a mania de sonhar já que sonho não arranha. Das marcas que ele causa eu aprendi lidar, já da pressa de abrir os olhos não.

Casciano Lopes

Horas depressa

Pode ser que não haja a semana que vem,
o mês do aniversário, o final do inverno
ou aquele dia sem chuva.
Pode haver só hoje,
um dia quente de agenda espremida
entre raios e trovoadas de fim de tarde,
um dia sem data especial argolada no calendário da geladeira.
O abraço de ontem, como o ontem passou,
esfriou feito braço sem colo e o hoje caminha de costas,
tão rápido que, às vezes, nem se despede, só vira passado.

Casciano Lopes

13.2.24

Consciente?

Não, eu não tenho superpoderes; sou frágil diante da dor, áspero diante da injustiça, medroso diante da incerteza, agressivo diante da ameaça, intempestivo diante do cinismo, arredio diante da hipocrisia, insensível diante da tolice, indiferente diante da prepotência, irônico diante da falsidade, ardiloso diante do egoísmo, ácido diante da neutralidade, bruto diante da covardia, rude diante da preguiça e cruel diante da mentira.
Por fim, sou de carne e osso diante do tempo, passando por ele e querendo ficar, buscando sabedoria e iluminação nas suas vagarezas, tendo que lidar com minhas ignorâncias e sombras vorazes e cheias de pressa.
E na verdade, nessa disputa entre eu e o tempo, não tenho a pretensão de ser vencedor, sei bem que é dele o 'superpoder', só quero que quando eu terminar de por ele passar, ele, tempo, tenha de mim o que contar, porque no fim da linha pessoal cruzada com a dele, o que contará não será o herói que vendi pra mídia, será o quanto consegui com ele dialogar dentro de minhas fragilidades e atitudes nada heroicas, não escondendo minhas inconsistências, mas tendo honestidade com minha humanidade, sabendo ser um simples homem e um homem simples, que não passou impune pela experiência frente ao seu infinito tempo, mas que se doeu inteiro porque por ele passava.

Casciano Lopes

12.2.24

Dizer e não ter a vergonha

A vida pede conta, nada é sem motivo ou coisa assim, não  acaso que fira mais fundo que o acaso com que você tratou seus dias, não há corte que sangre mais que os provocados pelo seu desinteresse por sutura, não há combate mais letal que o da falência dos acordos de paz consigo mesmo, até antes da guerra começar, porque a palavra é implacável no golpe e não dada ao acaso, como não o é o silêncio das trincheiras, onde você guarda seu monte de ossos sem causas e recobertos de pele sem preço e que tem que saber cumprir os ditos, porque tão somente viver não é coisa assim, jogado ao acaso, feito palavra sem bandeira de cor alguma.

Casciano Lopes

Só meus

Foi quando olhei quem eu era, que me tornei quem sou, e todo dia me olho pra ter certeza e me ajusto mesmo que na recusa, porque aceitar me confere a convivência comigo, mesmo que incômoda e cheia de dúvidas, mas justa e próxima dos pedaços que um dia quis longe, mas que eram meus.

Casciano Lopes

11.2.24

De tempo marcado

O tempo passou por mim de forma tão delicada que se deixou ficar na minha pele, contando todo dia enquanto continua passando, que continuará em mim ficando.

Casciano Lopes


8.2.24

Sou da turma do riso frouxo

Eu quero continuar me desafiando, não em pular de paraquedas num voo livre... tenho pânico de altura. Quero voar no chão mesmo, em terra firme.
Levar meu corpo pra passear em cada pequena saída, sabe: ir no açougue e comemorar o dia, vibrar com o açougueiro num sorriso largo, demorar em cada esquina com apreço e mirar cada rosto que passar por mim com interesse, pra que todos compreendam de importância e saibam como eu, voar na capacidade de ser feliz com o muito que têm e não triste com o pouco que falta. Preciso me encantar todo dia com o que posso, e sei que assim, poderei me surpreender com a duração do voo...
Talvez "sorri quando a dor te torturar" foi um jeito que Chaplin encontrou de fazer graça, então, vou sorrir, a bengala já tenho.

Casciano Lopes

No varal

E sobretudo manter bem lavado, perfumado e estendido nosso apreço pelo amor, onde não se fere e nem se tem a intenção do egoísmo, onde o humano está acima da razão e o bom senso não agride porque desmentiria a evolução que precisa de grandeza, em corpo de gente pequena, pra ser forte.

Casciano Lopes

Devias ver

O amor foi flagrado num banco de praça apanhando o chapéu que o vento levou de uma cabeça branquinha. Depois foi visto desembalando um pirulito grande demais pro tamanho do seu ansioso pretendente. Foi fotografado arrumando os cabelos de uma dona de mãos trêmulas. E sem querer foi percebido retocando o batom de uma vaidosa sem espelhos do viaduto.
O amor é coisa assim; conta dinheiro pra quem perdeu a visão até das cédulas, mas não a do reconhecimento dele... amor.
É notado parando o trânsito pra travessia da boa hora trazendo vida nova em momento de chegada... o amor.
O amor é um pouco isso; afasta a dor pra longe, não sobrando espaço pro descaso. ...E tudo vira parto, vida em estado de nascimento.

Casciano Lopes

7.2.24

Ato e desato

Quando abracei, foi porque meus braços foram possíveis; quando contei histórias rindo delas, foi porque me fez cócegas a realidade; quando caminhei as ruas e me encaminhei pras campainhas, foi porque tinha nas malas mais notícias que incertezas.
Hoje que o chão foge de mim, que o monólogo me assombra quando esqueço o texto e que os braços mentem espaços entre eu e tudo que vi, me resguardo o direito de duvidar da dor, porque a certeza dela me mata mais depressa.

Casciano Lopes

6.2.24

Zen palavra

Se o que você tem pra dizer
não pode ser dito baixo,
calmamente e de forma doce,
então,
você não tem nada pra dizer.

Casciano Lopes


5.2.24

Porque falam de mim

Os lugares por onde passei ficaram em mim,
e também me contam porque me sabem.
São modificados pelo meu olhar,
suas ruas foram caminhadas por mim
e sua fotografia nunca mais será a mesma.
Suas paredes ressoam minha voz ainda hoje
e meus ouvidos gastos,
ainda reconhecem as falas daquelas calçadas.

Casciano Lopes

4.2.24

A gente e um adeus

Quando acaba, a gente se despede...
Do jantar esperado
Das férias aguardadas
Da festa planejada
Da praia quando chove
Das maternidades e delegacias
Dos tribunais e carnavais
Da feira quando finda
Da infância
Da adolescência
Da boca pequena
Do primeiro beijo
Da primeira vez
Das promessas quando perdem altar
Das cidades que viram desertos
Da serventia quando perde a mão
E por fim, a gente se despede da gente,
sem abraço ou coisa assim,
só com as mãos no peito, como quem diz:
- acabou.

Casciano Lopes

Impermanência viajando

A gente vai embora...
Da primeira casa em que nasceu, da primeira escola, daquela rua dos amigos, daquele bar que conheceu, daquele escritório que parecia eterno, daquele parque no caminho de tudo... A gente vai embora.
Dos dias felizes, daquela semana cansada, das horas tristes, do sepultamento das pessoas incríveis, dos nascimentos, das viagens com seus portos e aeroportos, das rodoviárias e estações, dos anos velhos, dos novos, do mês passado, do que virá... A gente vai embora, vai passar, a gente vai.
Das agendas, das prioridades, dos retratos na estante, das lembranças e seus buquês, dos motivos, do endereço que mora e até dos corações das pessoas que quase eram casa... A gente vai, embora.
E porque a pressa é da vida, assim como a calma é da ida, a gente vai pras origens e caminha de volta pra casa o tempo todo, com a ilusão da permanência convivendo com o seu contrário pra não gostar demais de ficar, porque a gente vai embora.

Casciano Lopes

3.2.24

ABC

Pra quem sabe ler a cartilha do mundo não passa impune: uma manhã sequer, uma flor deitada em fim de primavera, um vento que foge do obstáculo e encontra a fresta ou uma árvore que cresce fora de hora porque um passarinho passou por lá... Na leitura de quem tem tempo, tem menino triste rindo, porque sabe olhar além de ver, e tira do espanto um motivo de canto e entende que a alegria é coisa construída apesar dos olhos banhados... letrados.

Casciano Lopes

Matriz da hora quebrada

Como o tempo fui passando, deixei uma vontade e uma saudade penduradas em alguma badalada de sino e, outras tantas, fui deixando cair dos bolsos, no resultado do choque entre eu e ele... Tempo.
Fui marcando as horas feito relógio de catedral, fui trabalhando feito ponteiros sem ser, e quando me percebi, estava assim, sem corda, sem marcar a hora da missa e dizendo ladainhas fora de hora, querendo tempo sem ter, sem ser.

Casciano Lopes

Alerta

Se até o planeta precisa conviver com suas chamas e conter o seu calor pra que sobrevivam os campos e seus homens...
Preciso cuidar dos meus incêndios pra que viva a minha parte 'selva', pra onde me retiro quando preciso me perder.

Casciano Lopes


Quer ficar?

É quando calamos e não quando gritamos, que entendemos as letras ditas de silêncios.
Há uma idade em nós em que achamos que a razão tem toda razão, depois, já quase sem ela e com mais idade, percebemos a utilidade da emoção e a sentimos toda, e amando ser à 'flor da pele', só passamos, porque quem quer ficar busca exposição, quem quer sentir... não.

Casciano Lopes


Antagonista

Tenho medos em mim que são só meus, ninguém poderá, por piedade ou dó, por um segundo se apropriar... Medos, em mim.
Eles são conversadores e insistentes, e dentro das lendas que eu crio pra sobreviver, eles sempre querem os personagens mais ilustres, brigam por eles inclusive; me arranham todo, judiam da minha aparência, me causando nojo, além da vergonha de mim... Medos.
Querem destaque e pra isso, me assombram, me esperam nas esquinas dos meus cômodos de morar, se jogam no meu pouco chão de andar e me espreitam nos espelhos dos elevadores...
Querem ser protagonistas do meu prédio e eu ainda conheço as escadas, a saída de emergência e o caminho do subsolo; não posso matar o que adoece os andares, mas posso evitar os subterrâneos onde esqueço meus inquisidores... Medos.

Casciano Lopes