27.3.22

Passarinho piloto

Há que se manter vizinho do céu
o homem que pretender caminhar a terra;
de modo que itinerante,
ele se sinta parte dele, caso contrário,
não conseguirá levantar voo
quando os pés se recusarem a tocar o solo.

Casciano Lopes

Nada pacato

Tem hora que é teimosia mesmo,
vontade purinha de contrariar a negativa...
Sair da subordinação da frase
pra uma oração positiva e impositiva.

Casciano Lopes

Catálogo

Não cabem nas mãos os lugares todos,
não cabe nos bolsos a saudade grande,
não cabem nos braços poucos os abraços largos,
não cabe nos pés ensaboados
tanta água vertida das fendas do mundo,
não cabem os retratos graúdos
no miúdo jeito de olhar o tempo...
Mas cabe na alma que é vasta
e que não se perde, quando sabe guardar.

Casciano Lopes

Pra perto e pra longe trazer e levar

Quando venta aqui em cima,
canta dentro de casa uma verdade só...
Não pode ficar no mesmo lugar,
o que só existe pra se mudar.

Casciano Lopes

Apenas guardar

E nos passeios poucos
recolho importâncias...
Trago pra casa.
O encantamento precisa
permear minhas paredes,
assim não esqueço
de por onde andei.

Casciano Lopes

25.3.22

Parada em tempo pouco

Há um lugar de parada,
onde largar mão do arado
um instante é fundamental.
Nesse espaço de recuo
como o da bateria de uma escola,
a mãe Terra nos ara,
revolve nosso chão
e fertiliza nossos instrumentos
de cruzar a avenida.

Casciano Lopes

Sorrir também é florir

Que nunca nos falte alegria,
não por ter os dias em mar de rosas,
mas por ter mar e não se afogar,
por poder admirar o lado navegável da vida,
assim como para os elementos e o ciclo da rosa
saber olhar e entender de fazer brotar.

Casciano Lopes 

Uma ponta de tempo

Eu vi o tempo de costas.
Tinha um caminho feito de pedras e cores,
tinha uma luz que sabia esverdear
quem por ele passava,
enquanto a moldura que o protegia,
servia pra fazer passar devagar.

Casciano Lopes



É meio dia

Não posso passar impune
pelos campos de plantio,
assim como a cera não fica imune
diante do sol mesmo que tardio.
Sou plantado na contemplação
e exposto ao ato de passar feito desilusão.

Casciano Lopes

O amor na estação

O amor foi visto entre árvores
brotando em folhas
e brincando de verde

Foi visto num chão de outono
Escalando troncos de inverno
Se dependurando em primavera

Soprando um aroma perfumado
Abanando uma paisagem exuberante
Causando nos passantes... Verão.

Os que não viram, ainda verão
Que ele é coisa simples
Que se posta nos olhos e cresce no coração.

Casciano Lopes

22.3.22

Entre lados

Ainda que custe tudo
que sobrou da ponte,
vale o esforço de jogar
o passo em direção
ao lado manso do rio.

Casciano Lopes

E ainda nada saber

Não estar no controle de coisa alguma
é sobre saber o vulnerável estado humano
submisso às estações.

Casciano Lopes

19.3.22

Dona ilustre

Antes de nos sentarmos na conversa,
antes mesmo de puxarmos as cadeiras da vida,
antes da ceia e do partir do pão;
que se sente à mesa a gratidão.

Casciano Lopes

17.3.22

Tem sol o tempo todo

Meia-noite carrega na expressão um tempo terminado, parece que tudo que não foi feito fica prorrogado pra quando não for noite, como se minutos antes também nao fosse noite.
Quando é meia-noite decretamos tempo findo e muitas vezes, nos sentimos madrugada, é como se a carne desligasse as capacidades.
É como na vida...
E precisamos fazer das altas horas um bom lugar de estar, acomodar-se mesmo que em travesseiros de forma calma, pra não afugentar a vida e nem escapar dela.

Casciano Lopes

Lacrimejar

Por vezes os olhos são vítimas de ciscos.
Eles viajam por céus,
elevam-se da terra numa ventania,
surgem das águas quando se agitam e,
como se obedecessem um endereço,
atingem a vidraça de ver.

Penso que o par de olhar,
serve exatamente para rebater ciscos,
pra que não desçam e se alojem no coração,
causando fissuras,
de repente,
sangraria demais e causaria cegueira na janela de ver.

Casciano Lopes


15.3.22

Ensaio do que se foi

Da minha poltrona de quarto, em meia-luz e em meio e por meio dela, avisto uma porta que me transporta.
Passo por ela com o olhar de pernas apressadas e como num passe de mágica, saio do "estar" para o "estive" em milésimos de segundos.
Revisito minhas horas de caminhada e tenho a impressão de que faço isso agora com mais encantamento que das outras vezes, parece-me que demoro o olhar, que abraço com mais sede minhas pessoas todas e que nos bancos em que estive, agora deixo escrito recadinhos: falas do que não disse.
Ah se não fossem as portas! Com esse dom de nos fazer passar como que por uma dobra de tempo. O que haveria de nós no haver de um quarto escuro?

Casciano Lopes

14.3.22

Pele em fuga

Quando o sol me bate
Eu apanho feito sombra
Corro até a noite pra contar
E a lua reflete em mim
Que pela manhã ele volta.

Casciano Lopes

Hoje, um lugar

É como na construção de um prédio:
elabora-se a planta
e vem a lida com o cimento e vergalhões.
Coisa de tempo.
O que não se deve
é gastar a venda das unidades
durante o processo.
Colocar o amanhã no lugar dele
não dispensa projeto, dispensa a pressa,
não se gaste, não gaste o tempo.

Casciano Lopes

Um corpo de casa

Para além de uma dor,
há uma desocupação certa do imóvel...
Um dia.
Devo devolvê-lo em bom estado.

Casciano Lopes

Face a face

É necessário retocar o riso,
lustrar a vista
e desembaçar nossas metades no espelho.
É preciso cuidar do nosso estojo de cores,
pra que o medo e a coragem
se harmonizem na tela
e nos compreenda em um inteiro,
onde vença nosso ousado lado.

Casciano Lopes

13.3.22

Acorda! a corda que badala e não cala - 1701

É preciso dizer...
Houve um tempo de glória.
Houve dias de fartura e a abastança não era de dinheiro, mas tinha muitos dias num ano, nos meses, nas semanas e os próprios dias pareciam grandes.
Houve festas, encontros, cerimônias e até lugares que se tornaram pessoas e pessoas que eram canto de regozijo.
Houve viagens que substantivaram a arte de um tempo.
Passeios por viadutos que tinham a magia de transportar cidades inteiras pra dentro de uma vila, e colocar a fazenda que nasci dentro de uma bolha de sabão nos parques que me couberam.
Houve um tempo que ônibus me cruzavam, e eu neles brincava de condutor de charrete, que na janelinha me sentava como que em poltrona de cinema.
Houve uma possibilidade que me causou teatros, peças inesquecíveis, filmes memoráveis, exposições e que por uma fração de passado, não me colocou na sinfonia do realejo... Todo periquito, dono da sorte!
Houve sim e eu sei disso:
Uma mãe que me deu pro tempo como que soubesse que ele um dia me diria que houve um tempo.
Amigos abraçavam minhas calçadas, riam de meus casos pintados de circo e dançavam todas as minhas salas.
Tempo de mesas cheias, falas altas, tanto quanto a risada de minha visão que gostava do que via.
Houve um fazer e desfazer de malas felizes, que tinham o poder de transformar qualquer sexta numa de carnaval, onde eu era arlequim e as ruas com suas colombinas me atiravam samba pra eu passar.
As memórias são as chaves que abrem a oração, onde sou sujeito da ação.
Não sou solidão pelo que houve, sou gratidão por ter protagonizado um espetáculo, e não sozinho: gigantes estiveram lá comigo. Não importa se partiram por minhas escassas possibilidades hoje ou por outras razões... O show tem que continuar, eu vou seguir, porque tenho história pra contar.

Casciano Almeida Lopes

11.3.22

Vaga luz

Eu posso
ter pirilampos entre as palmas,
só não devo prendê-los.
A luz
tem a capacidade de desenhar a saída,
fechar as mãos
é trancar a porta e apagar a chave.

Casciano Lopes


Sombreado de penas

Quando estamos ressequidos demais,
recomenda-se
sentarmos à sombra de uma árvore.
Caso ela,
tanto quanto nós,
estiver ressentida sem folhas,
nela pássaros se plantarão,
suplantando a sequidão de nossos galhos.

Casciano Lopes

Paisagem de invento

Aqui em casa quando falta horizonte,
a gente inventa um traço,
desenha um sol amarelo
e estabelece um mar ao fundo;
água pouca pra não apagar o solar consolo.
Colocamos na janela o desenho
e criamos então: varais.
Aí penduramos nuvens,
de onde podem soprar e secar a lamúria
e fazer chover nossos olhos
de encurtar distâncias.

Casciano Lopes

10.3.22

Ainda dói

A saudade do que vi,
do que deixei de ver,
do tempo...
Especialmente de quando
passei por ele sem vê-lo.
Saudade,
é um passado que busca edição,
todo dia antes de zarparmos,
pula na nossa embarcação
e a caminho da ilha
nos olha de pertinho,
com jeito de redação.

Casciano Lopes

8.3.22

Passarinhos de toda sorte

Foi no meu viveiro que fizeram ninhos,
nos galhos de minha nascença cantaram pios
e voaram mais tarde levando meus telhados
quando cresci.
Com eles aprecio a vista desafiando o chão,
desde então.

Casciano Lopes


Haverá

Há dias em que sento nos meus trechos
só pra descansar da estrada.
Há batalhas que venço no interior
só pra evitar o podium da pele exposta.
Há noites que brinco de acordar
Só pra não perder o que amanhece em mim.
E assim,
havendo cada vez mais no existir,
Entardecerei.

Casciano Lopes

7.3.22

O tempo e sua janela

Lá fora há medos escancarados,
aqui dentro medos escondidos.
Seriam os mundos desafiadores, assustadores?
Tanto o de lá quanto o de cá
pedem só coragem,
um pouco mais de corpo avante.
Diante da ousadia dizem
que o temor como água corre.

Casciano Lopes


Vidrar

Quando o tempo açoita minhas janelas,
desafiando minhas grades de proteção,
descubro que devo deixar a dor do lado de fora,
assim a chuva lava,
o vento leva,
o sol queima
e se por acaso se empoeirar, 
não estará do meu lado de dentro,
a dor suja.

Casciano Lopes



Capaz de perfume

Que nossos dias
saibam nos dizer
tudo que as flores sabem
contar para os jardins.

Casciano Lopes

6.3.22

Diante dele quiçá como vinho

Devagarinho
pra eu não me acostumar.
Lentinho
pra que eu consiga admirar.
Mansinho
pra que minha carne possa suportar.
Ralentadinho
pro coração não sacolejar.
... Tempo, cuide com carinho
enquanto eu for caminho
e que eu o devolva na mesma medida 
quando for passarinho.

Casciano Lopes

5.3.22

É de pedra

Um dia me sentei numa pedra
e de cachimbo na mão pude ser quem quis.
Pude até produzir clorofila
quando com as árvores me fundi.
Não sei se foi
pela fumaça mágica do cachimbo de cura,
se pelas roupas que vestia
feito manequim pequeno de divindade
ou se pela pedra que tinha o poder
de produzir pensamentos.
O fato é que desde então
circulo por mundos e eles me elaboram todo,
enquanto durmo e acordo na filosofal.

Casciano Lopes

Lugar de dividir

Encontros existem
porque o caminho de compartilhar
é muito mais estrada que beco.

Casciano Lopes

Blindagem

Enquanto meu entorno estiver adornado de vontade,
meu contorno iluminado de quietude
e meu retrato souber falar de força...
Meu interior terá o tamanho das metrópoles,
meu profundo permitirá minha consulta sem senha
e meus medos saltarão do trem antes da estação.

Casciano Lopes

Lentes

Quando criança
pude brincar de gente grande,
adolescente de gente madura
e jovem de gente velha.
Agora posso sim continuar a brincar,
afinal,
não é isso que fazem as crianças?
Chico Anysio disse uma vez
que deveríamos nascer velhos
e morrer jovens.
Eu penso que
se os olhos guardarem o essencial,
feito aquelas fotografias
que guardam as gavetas,
nunca teremos idade,
teremos paisagem.

Casciano Lopes

4.3.22

Santa

Mãe não é apenas uma divindade,
é um lugar.
Uma delicada casa,
um sacro templo
e um milagre em forma de mundo.
Se não fosse assim,
talvez sem graça a humanidade,
viveria desprovida de santidade
e desabrigada de teto e chão,
sem rosário na mão.

Casciano Lopes

Lugar de mãe fora do verbo

Hoje...
Meu coração queria de novo ficar inteiro
naquela tua risada escancarada.
Meus olhos queriam enxergar primeiro
tuas receitas sendo preparadas com aquele esmero
de quem comete uma arte, um projeto arteiro.
Meus braços queriam te encontrar
dentro daquele abraço quando eu chegava
e hoje... Eu chegaria mais cedo.
Minhas pernas hoje caminhariam com mais pressa
pra dentro do teu colo que ouvia como reza.
Hoje,
minha lágrima perderia o leito
só porque teu riso de sim se deitou primeiro
no meu rosto de menino matreiro.
Ah!
Tem gosto daquele pão caseiro,
minha saudade de peito derradeiro,
meus verbos em tempo passado
tem o cheiro daquele teu café com bolo.
Tua presença deixou um tempo tão presente
que hoje penso saudade como uma pessoa...
Sem conjugação,
Daquele jeito e
fora do tempo,
assim como a ausência
que parece coisa fora do corpo.

Casciano Lopes

É preciso

Ainda é mar
se o céu pintar
uma tarde cinza.
Ainda é sol
se o artista cobrir
um trecho de mar
com seu navio.
Ainda é navegável
o homem
que se permitir tempestade
e nas velas saber esperar...
Passar.

Casciano Lopes

3.3.22

No dia que...

Foi me encontrando
que encontrei motivos.
Foi me embrenhando
nas esquinas de minhas vilas
que descobri as aldeias onde pude me despir.
Foi mergulhando nos rios sem saber nadar
que eles me levaram pro mar e em braçadas,
muitas vezes estúpidas, aprendi a nadar.
Foi sentando
tantas vezes no incômodo banco de pregos
que me achei martelo na construção
das vielas por onde precisava passar.
Foi me perdendo no que eu sabia
que aprendi a ter dúvidas
e saber que elas são questionadoras,
assim como eu,
então sentamos e pontuamos as interrogações.
Ainda tenho muito chão
dentro de poucas pernas,
mas não ando só.

Casciano Lopes

2.3.22

Princípio de observar

Quando o céu senta pra conversar
e a terra pra fazer silêncio vira teto
eu buscando ser passageiro
embora querendo ficar,
me vejo todo água
procurando um canto de escalar.
Entre a conversa e o quieto estar,
hei de aquietar
sem deixar de cantar as formas de calar.

Casciano Lopes

Solar

Ainda haverá outros sóis
Nem que nasçam em mim
Enquanto me ponho com eles.

Casciano Lopes

O jardim que nasce

Das importâncias todas
A que mais leva alma
Talvez seja um corpo capaz
De florir primaveras

Mesmo que se estendam
Invernos e outonos
Os verões aquecem o crer

E quem se torna importante
Pode ser vaso de cristal
Decorando os vãos de salas

E enchendo de vista
A casa de morar gente
Com jeito de flor
Nada em vão, gente.

Casciano Lopes

Portal

Na minha cidade tem um rio
onde mergulho pra colher pedrinhas do fundo.
Bem no fundo do bosque que a contorna
tem jabuticabeiras onde me demoro.
Nas ladeiras das casinhas sem portões
correm meninos,
que no fundo são como eu...
Com mania de água,
vivem a se espremer,
não resistem a um bom lugar de correr..
Bem nos olhos, lá no fundo,
vivem todas as possibilidades,
bem lá no fundo de minha cidade.

Casciano Lopes

24.2.22

Terra acesa

Achei de uma delicadeza quando o céu acendeu de noitinha, lá no interior ficou clara a trilha e o matuto caminhou tranquilo entre vagalumes.
Quando as lâmpadas lá de cima se incandescem até a criação do pasto se orienta, o roceiro e seu fumo descansam num 'causo' mastigando o seu dia entre compadres.
O alpendre vira uma sala de espetáculo, o moinho de café num canto aplaude, o cachimbo faz silêncio na fumaça e até um sapo desavisado que passa pára pra escutar, ou será que é pra admirar?
E assim, se cospe com cuidado lá na roça, pra não incomodar ou apagar: o matuto, o café fumacento, o fumo de rolo e os pirilampos, lanterninhas da plateia.

Casciano Lopes

Primário?

Quem pode nos acusar de tempo?
Furtado
Esticado
Corrido
Esquecido
Escondido ou
Amontoado.
Se fomos sempre
autor e réu da ação.
Se ao final,
formos também os juízes de nós mesmos,
haverá pena ou só lamento?

Casciano Lopes

23.2.22

Conte até dez

Há que se procurar com jeitinho,
não fica tão na vista
e nem sempre ao alcance.
Muitas vezes brinca até comigo,
se esconde fingindo inexistência
e dá um trabalho!
Mas se encontrado,
abraça feito criança encontrada...
O melhor de mim.

Casciano Lopes

22.2.22

Muros de conserva

Não é que eu não tenha dores,
olhar lacrimoso
ou quintais salgados.
É que eles não me possuem
e como sou dado mais ao voo que à pista,
pairo...
Olho para o sal como conserva do corpo,
seja num canto de olho
ou num cercadinho de molho.

Casciano Lopes

Bate espelho

O que me distancia do que acredito
não é só a negativa de um povo,
meu reflexo se não cuido,
vive na disputa do prêmio
de ator coadjuvante.

Casciano Lopes

Em cena

Um dia o cenário
arrasta as cadeiras
e aceita o convite,
um dia o palco sobe o som
e o assoalho estende as mãos
e a plateia então,
dançará toda sua sorte
numa sapatilha de ponta.

Casciano Lopes

Posto e imposto

O que nos segrega muitas vezes
é a descrença na nossa força.
O que nos aparta da vitória
tantas outras vezes
é a recusa da luta.
O isolamento requer quase sempre
um enfrentamento
e as grades sempre cedem
a uma vontade de liberdade.

Casciano Lopes

21.2.22

Impensadas causas

O pensamento atinge
tão profundamente os corpos,
que abre passagens secretas
se tornando indetectável
à percepção de aparelhos.

Casciano Lopes

Montagem

Sempre levei para o dia
a convicção de que não estava pronto,
e no seu decorrer
e antes da noite fui me aprontando,
não pra ficar inteiro,
mas para no dia seguinte
juntar mais bonito
os pedaços de mim.

Casciano Lopes

Outros mais

Cada mundo tem seus mundos
e mundos particulares moram
em um mundo maior.

O humano
também é um complexo de mundos
que habita formas de criar mais mundos.

Casciano Lopes

Vidraça reverente

Da janela o mundo
confirma o que já sei...
O agora é a eternidade
e ele em todo tempo
acontece pra sempre.

Casciano Lopes

Quando

Um dia...
Até lá,
rio.

Casciano Lopes

20.2.22

Estar pode ser fora

Vou andar
Talvez pelos bares que estive
Ou naqueles que não provei
Mas que quis
Vou
Talvez cruzar as mesmas esquinas
Ou me sentar nas desconhecidas
Mas que iventei
Aliás
Um dia de inventar
Eu invento um jeito
De andar por fora da dor
E aí vou contá-la toda
Pra que ela me deixe
Mesmo que eu precise
Chorar em cima do garçom
Ou lavar a rua com a água que guardei
Vou parar de andar por dentro dela
Da dor
Esse ano eu vou
Ah vou!
Me pintar pra avenida
Como que pra apoteose
Nu
Sem ela
A dor.

Casciano Lopes 

19.2.22

Meta: Bateu ou apanhou?

Perdemos a alegria ao longo das obrigações. Tudo sério demais e nos colocamos dentro do que disseram ser legal: cumprir a meta. Um implante infeliz que nos dita por toda a vida como e quando falar, como e quando agir pra dar certo.
...e precisa dar! A meta.
Meta que não precisa ser alegre, que pra ser atingida precisa labuta, a escalada é bruta e parece que se você não luta, não merece alcançar e mesmo que tenha apanhado durante... Ah, estava fora da meta!
Justifica-se a tristeza e pronto.
Esquecemos de comemorar as pequenas conquistas do dia, nos furtamos da gargalhada com o que antes ríamos. Deixamos de vibrar com a paz, a nossa de espírito, só porque ela há muito foi trancada numa planilha de números. Deixamos de brindar o riso frouxo e fácil porque caiu em desuso, está fora de moda.
E vamos deixando sempre pras férias aquele arregaçar das cortinas, aquela ruga de risada, aquela camiseta larga e velhinha que só combina com caminhar descalço no quintal de chuva...
Sem percebermos,
o quintal seca quando a chuva passa, a traça corrói o que amarela em nossas gavetas, as cortinas pesam de poeira e as férias se e quando chegam, não trazem a ruga da risada; carimbam quase como uma agressão a da idade.

Casciano Lopes

Remo que navega a cura

A poesia me tirou do lugar de covardia.
Quando já estava quase convencido
de que não podia,
de que doía
e de que a vida era sobre se conformar...
Ela apareceu numa curva de águas;
aboliu tudo que eu pensava saber
e virou remédio,
aquele bom que dá valentia.
Me ensinou que a vida é também
sobre teimar e criar mandamentos
versados em tábuas que viram lei
e desde então,
sigo teimando
e subindo o rio
feito macio mesmo que duro o rio.

Casciano Lopes

16.2.22

Pode ser verde

O musgo agarrou-se e subiu pedras
e como alpinista alcançou o topo
do muro, que do seu mundo era cume.

Escalar muros,
decorar mundos,
e comemorar topos.
É mais sobre ser cume
Que chão de pedras.

Casciano Lopes

Abençoar é casa boa

O lugar da benção
é próximo ao da maldição,
a diferença está no custo da locação.

Depois do contrato

Se houver verba ou dela troco
Talvez não haja bolso em condição
para a desocupação.

Casciano Lopes

O centímetro de cada um

Eu não quero ser a régua do mundo,
não devo e nem posso.
Não me cabe e nem cai bem
unidades de medidas nivelando
ou impondo as lonjuras
de qualquer pensamento;
sejam os meus ou de outros.

O transbordamento dos potes
e suas dosagens
de quem quer que seja,
inclusive dos meus,
diz respeito mais a individualidade
de cada recipiente construído,
e essa construção, se não minha,
não trabalhei nela,
o que me desautoriza na medição...

E as minhas capacidades de armazenamento
também dispensam fitas métricas alheias
de quem não me ajudou a construir as comportas
que represam minha individualidade.

Casciano Lopes

15.2.22

Quantidade de viver

Pode ser que o sonho não caiba no sono,
no apartamento ou no corpo pouco...
Já pensou que expandir pode ser reduzir
para um cochilo sentado
a horizontalidade do descanso?

Casciano Lopes

Retrô

Só ando com jeito de porta antiga,
mas os batentes estão em bom estado.

Casciano Lopes

Um número de parceria

A magia não está só na cartola.
Na ponta da varinha de condão
tem um mágico e sem os três,
não acontece aplausos.

Casciano Lopes

Tranquila espera

Um dia a fera dormirá na relva
e o manso cântaro beberá sua água.
O rio que agita o leito
é o mesmo que serve de cama
para aplacar o sono da sede
e fornecer sonhos no seu profundo.

Casciano Lopes

Compacto intervalo

Quando olho
aprendo a ver
e toda vez que vejo
quase compreendo
a compressão de duas datas.

Casciano Lopes

Mais ou menos um... Dia

Quando amanhece
lá pras bandas da descrença,
recomeça a vontade de menino,
um botão de reinicar
apertado inconsequentemente
por dedos mínimos,
gera vontade
lá pras bandas de morar
e tudo vira crença de possível
lá pras bandas da coragem.

Casciano Lopes

Vida de ponteiros

Os relógios me recordam.
Automáticos,
de pilhas ou de corda,
me acordam.
Os de parede contam histórias,
como quando estou na estação.
Os de pulso cantam o pulso,
como quando estou em batimentos.
Os de bolso ouvem meus passos
e se animam no movimento do tempo.
Como se houvesse tempo,
e há,
para contar o que não vejo
e nem vi passar.

Casciano Lopes

14.2.22

Parlatório

O corpo é um evento
que inclui vaias e aplausos,
plateia com silêncio e alvoroço
como todo espetáculo tem.
Quem mora dentro só precisa
ser um bom mestre de cerimônia,
sabendo o palco de ação
como sagrado mesmo que de carne.

Casciano Lopes

Interpretar

Ainda não entendo,
mas talvez não seja o caso entender.
A não busca também é lugar de compreensão.

Casciano Lopes

Finalmente é de contar

Vim pra sorrir e fazer rir.
Pra contar uma história
sem saber começo ou fim.
E se por fim não concluir,
que eu tenha sido capaz
de transferir aos da minha aldeia,
a pena e o tinteiro de fazer do findo mundo
um lugar sem fim.

Casciano Lopes

Sarilho de agoras

Por hoje busco motivos
E por eles, só por hoje
Descubro cordas que puxam:
O balde, o poço, a água
e o homem molhado de funduras.

Casciano Lopes

13.2.22

Poema mergulhador

Poucos versos
Meus versos poucos
Poesia pouca
Forma pequena de dizer
Um poeta precisa ser pouco
O poema deve ser grande
Seu corte ser profundo
Se quem o diz é pouco
E pouco, não raso
Um único verso pode ser
Poema
Se a palavra mergulhar
E durar muito sem respirar.

Casciano Lopes

Posto de sentimentos bons

Se curarmos nos curamos
Se doarmos nos abastecemos
Se acolhermos nos protegemos
Se respeitarmos nos honramos
como humanos que divinos somos.

Casciano Lopes

Permuta ativa

A árvore
não questiona a formiga que passa,
não desapropria a que nela mora,
não açoita a que passeia por seu caule
e jamais interrompe a vocação dela,
de ser formiga.
Ao contrário,
sobrevive e sombreia o terreno,
oferece frutos,
compartilha galhos
e aprofunda raízes.
Passiva? Não.
É de sua natureza
e cumprí-la é sua vocação.

Casciano Lopes

Na viagem, a bagagem que não pesa

O que sustenta meu destino
mora numa casinha de madeira
que fica lá pras bandas da origem.

Casciano Lopes

Encontros

O sol que pede colo pras águas
corre o risco de se apagar em mar.

Casciano Lopes

Vila do entendimento

Não espero que entendam
o ipê com suas fases,
se nem a estrada compreende
seus arbustos da margem.
Espero que haja gratidão
na casa do vilarejo,
sem ela o vaso da mesa
fica vazio de flores e isso,
não posso entender.

Casciano Lopes

Barulho em quietude

Quando eu sentar,
devo aprender caminhar
por minhas distâncias.
Quando não puder andar,
preciso sentir o meu chão
mais profundo.
Do meu não,
tenho que arrancar
mesmo que aos gritos
o sim.
E assim,
o silêncio me guardará protegido
na caminhada dentro de mim
e calará minhas paredes.

Casciano Lopes

11.2.22

O menino e a jaca

Eu tinha qualquer coisa entre seis e sete anos,
e era uma das tarefas levar almoço pro meu pai na roça.
Coisa de quilômetros poucos,
só o suficiente pra aumentar o peso do picuá
(branquinho alvejado, nascido de sacos de mantimentos).
É, a estrada tinha costume de dar ganho de peso,
como se desse sustança ao alimento viajante.

Um dia comum, voltando do exercício,
os olhos correram pra um pé de jaca e criou vontade.
Me aproximei, pedi ao Henrique (filho do administrador),
se poderia levar pra casa a bitela jaca caída aos pés...
Minha mãe amava jaca, e eu as duas.

Consentimento dado e com a jaca doada,
precisei da força do contentamento pra suspender a exagerada.
Nesse dia o caminho fez a graça de se estender.
E se não fosse o cheiro da fruta animando os passos, nem sei...

Chegando próximo do alpendre da casa de alegrias,
gritei como quem vence uma guerra: - Mãeeeeeee!
...Talvez tenha sido meu primeiro contato com a canseira.

Mesmo orgulhoso que estava, pude ouvir minha mãe perguntar:
- Que é isso, menino?
Expliquei e continuei orgulhoso.
Foi quando recebi da grande Mestra a maior lição de todas,
afinal, tive a honra ne nascer de sábia e a jaca foi instrumento,
foi sabedoria em cima do suor menino.

Em tom de doutrina inflamada, disse:
- Você nem entra. Vai voltar agora no seu próprio rastro,
e vai devolver essa jaca no pé da árvore que achou. E se
o Henrique estiver lá ainda, vai se desculpar e dizer
que na sua casa tem o que comer e que foi feio o que fez.
Quando voltar a gente termina essa conversa... Arreda pé, menino!

Bom, a tal conversa dispensa prosa aqui.

A estrada e sua distância até hoje fazem o caminho da roça
dentro de mim... Só sei que jamais esqueci
o cheiro da jaca, o peso de um picuá e a conversa com a sabedoria.
Devo minha riqueza por ter quilômetros caminhados
entre ter honra antes de ter fome.

Casciano Lopes





Atuar o grande ato

Vive aqui
Um caminho com jeito de interior de cheiro
Uma luz parecida com folha ensolarada
Um jardim com aparência de cor na janela
Uma casa com um toque de gente doída de amor
Um céu de pisar no chão com pés de quem chove
Umas árvores castas que protegem o cenário...
E dentro dele, feito no palco,
sempre estreia alguém que como manhã, brilha.

Casciano Lopes

10.2.22

Santidade que canta

Quando meus cantos
me visitam e eu a eles,
entendo sobre prantos
e os mantos
que os guardam e enxugam.

Casciano Lopes

Homem lido

Agradecer me acrescenta
Reclamar me apequena.
Devo continuar preocupado em imprimir
em cada história que construir um livro bom de ler
e é só o que interessa... 
Uma boa leitura.

Casciano Lopes

Móvel em mãos

Ainda que nas gavetas se escondam os anéis,
carregarei com apreço os dedos,
afinal,
sem eles não poderei abri-las um dia.

Casciano Lopes

8.2.22

Ateliê particular

Depois dos anos me achei costureiro,
me encontrei pregando botões,
me deparei com remendos,
que me disseram que fui eu que fiz...
A agulha e a linha disseram.
Os panos e seus danos
deram lugar ao ofício
e eu todo dia acredito, 
desde então,
me sento numa varanda que vive em mim
e alinhavo os ganhos.

Casciano Lopes

Ando namorando

Foi de caso com a falta
que descobri a sobra.
Foi namorando a aspereza
que casei com a delicadeza.
E amante da certeza de coisa alguma,
fui pego pela dúvida
de saber das perguntas
nenhuma.

Casciano Lopes

7.2.22

Em algum lugar de ventar

Quando olhei, vi passar o vento.
Sentou-se em um banco da praça
e me esperou.
Me envolveu no caminho e virou ventania,
dispersou toda minha concentração
e deslocou o que eu sabia de mim mesmo.

Casciano Lopes

Águas minhas

Quando resolvo escalar minhas encostas,
cruzar minhas pontes
e me esgueirar nas passagens estreitas
de meus pensamentos,
há um estímulo que motiva a aventura
e desperta a curiosidade...
Um rio desconhecido que me corta inteiro,
também sou eu, o rio
o rio que me margeia quer que eu salte
e eu nele desemboco.

Casciano Lopes

E olhei de novo, quando vi a partida de mãos dadas com a chegada

Agradeço por ter na despedida
a oportunidade da gratidão.
É quando olhei uma última vez
que entendi de permanência.
E quando abracei pra ficar,
nem sabia
e estava reverenciando a eternidade.
Ficou...
O verbo que regeu a frase,
os dias e a impermanência toda.
O tempo do caminho,
as manhãs, tardes e noites
do telhado de viver encontros.

Casciano Lopes

6.2.22

Ares de pilotar

Ontem poderia construir aviões.
Hoje sou construtor de céus.
A idade me trouxe a ideia
de que os campos abertos para decolar,
são mais importantes que as aeronaves
e pistas pesadas sem teto para voar.

Casciano Lopes

4.2.22

Papo de tempo

A tartaruga e o coelho conversavam
quando foram interrompidos pelos ouvidos,
quando um começava ouvir,
o outro findava a frase.
Acordaram o silêncio então,
pra que ouvissem sem dizer
o que não cabe na audição.

Casciano Lopes

Planeta homem

Seja destemido.
Firme,
honesto com a longitude
das perdas
sem perder a lealdade com a latitude
dos ganhos.
Porque no final da reta
o equilíbrio das coordenadas
é que sustenta a esfera humana.

Casciano Lopes

Fôlego contido

Assim tão perto
Assim tão quente
Assim tão dentro
O pulsante
O circulante
O instante
Assim um sopro
Latejante hálito
Vivente.

Casciano Lopes

A medida calada

As maiores distâncias
estão entre o olhar e a palavra,
é preciso silêncio para ver
e só depois calar o caminho com boas falas.

Casciano Lopes

Sobre a cabeça fora d'água

Ao médico a gente vai
como ao mar...
Como quem sabe nadar,
sem esquecer a boia.

Casciano Lopes

Dorme, mas iluminado

Ainda é caminho acender a luz.
Descansar sim,
mas o despertar requer a ação
de levantar e tocar o interruptor.

Casciano Lopes

2.2.22

Toque de aura

Vou caminhar na minha calma,
não que eu seja calmo,
mas a alma não pode ser brava
e então pede pro corpo, calma.

Casciano Lopes

Sorrir quando...

É sobre rir pra vida
 E não da vida
Sobre penar e planar
e contar a graça
É caminhar
Mas também parar
Pairar.

Casciano Lopes 

Ainda ontem sabia e hoje?

Vejo tanto no espelho!
Um tempo que se deixa fotografar
Uma camisa xadrez de menino que sabe contar
Uma estrada que sabe viajar
E um homem que sabe responder
muitas vezes sem saber perguntar.

Casciano Lopes

O nada e eu

Pra entender de completude
é preciso na vastidão de coisa alguma
ter atitude.

Casciano Lopes