31.8.10

Conversando com ela

Se pudesse conversar com a emoção
Ele diria...

Do tamanho do bem querer e do cheiro do suor
Mostraria o necessário para tingir sem tintas
A chuva fina da tela apaixonada
Contaria em versos as composições que fez
Na ausência e em provérbios
Diria do aprendizado de mãos solitárias
Dedilharia as cordas bambas da viola
Amante tinindo o som como quem tem o tom
Se pudesse arrancar de dentro o sopro
Um sopro só como música
Um desenho só como criança
Um lamento escorreria só
Como só escorrem as pernas de sertanejo
Trilhando a cana quebrada
Uma lágrima só lavaria toda a quebrantada estrada
Baniria toda iluminada a escuridão
E a escada teria um sentido só
Como só tem sentido a compartilhada visão
Só sentindo
Sentimento sentido
Que sintoniza a estação
Dando sentido à canção
Sentidos da alma
Do só
A solidão de quem falo.
















Casciano Lopes

30.8.10

Gestando

Anseios sussurram
Rasga-se a unhas
Eleva ao inconsciente
A torpe consciência

Dilacera as madeixas
Abranda a brisa
Fervem os cílios
Temperados a sal

Anseios providenciam o leito
Em que navega o rosto
Seus faróis mergulhados
Apagam-se no mar

A ira das vértebras
Quebra ossos valentes
Como corpo desfalecido
Anda pesado o medo

Jura firme a razão
Clama pobre a emoção
Sábio o pensamento
Perde todo dia suas teses

Escreve com a tinta frágil
No papel pálido
Suas memórias tolas
Sua incerteza perece

Ferina a prece
Tece a cura
Cala o grito
E muda o rumo do imutável

Constrói mais um dia
Como constrói-se o sonho
Uma telha por vez
Um sussurro por esforço

Ver a construção do desejado
Enegrecer sob o escaldante
Lembrando que por dentro
Tudo é claro feito alma

Que já grita liberdade
Que já vive o ventre livre
Vive
Sempre vive.

Casciano Lopes

25.8.10

Mundo acelerado

Amanheceu na avenida
Poucos carros que corriam dos sinais
O sol levantou-se
Trouxe mais motores já não tão acelerados
Tudo parou na febre do asfalto
Até o coração inquieto
Por um minuto descansou
Sentado na impaciência de outros,
Pensativo analisou ao redor
Concluiu que tudo desacelerado acelera a morte
Em busca de um sonho perde-se todos
O que interessa parece ser o menos interessante
As rodas movem invertidas as engrenagens
Se menos sólida a paisagem
Mais brandos navegam os faróis
Nosso porto de vida já louco
Morre um pouco em cada tormenta.

Casciano Lopes

Vida palco

Meus ídolos estão na vida
Movimentando os sons dos meus ouvidos
Encenando no palco o que a vida não ensaia para dizer
Estão nas rodas trocando os papéis
Ditando o ritmo que pulsa forte na escrita do poeta
Vão guardando a época dentro das capas
Vão bailando passos no compasso do tempo
Criticando o poder
Disfarçando para se ver o certo
Mostrando a cara pelada
E suas idéias cada vez mais nuas
Vestem a consciência de que uns aplaudem
Enquanto aplaudidos despedem-se da vida
O fato que mitos e fãs se completam...
Sou mito, sou nú, sou fã, sou gala se visto
Sou ídolo de uma geração única
A que está para nascer.

Casciano Lopes

Parceria

Leve nas mãos o suficiente para um aperto
Na força apenas o necessário para uma expressão
Na calma o mínimo que exige-se da mansidão
Na alma a certeza de que está vivo
Leve no rosto a confiança de que pode sorrir
Na nuca a permissão de um toque
No ouvido sempre um assobio cantador
Na sobrancelha o desenho da capacidade
Nas pernas o ímpeto e a coragem
Nos dedos o afago e nas mãos o destino
Nas costas a trajetória e convicção
Nos olhos o mapa do outro
O compartilhar é existir
E a diferença entre viver e estar morto.

Casciano Lopes

Homem insensato

O tempo que passou em branco
Tingiu os cabelos e o passageiro levou os fios
A saudade do vivido enlouqueceu o inesperado
O não acontecido escondeu-se da emoção
As luzes inebriaram a alma desiludida
Manchando de solidão a desilusão
No chão escorreu a fome
Lavou a sede da insensatez
Cravou as raízes no tempo incontável da areia.
Hoje o alado povoa de asas a imaginação
Vôo de sóbrio enlouquece a razão
Busca enchente para os leitos
Cavalos para os pés
Quer vida mesmo que louca
Insana e insensata
Quer fios para as teias
Quer brancos naturais
Quer a febre sem o alho
Não quer descolorir.

Casciano Lopes

Desejando

Como ao matadouro vai o boi
Como cego voa o pássaro
Busca a alma cabisbaixa o perfume dos jardins
Desvanecida tateia seus escombros atrás de sobrevida
Teme fenecer como luxo falido e foge do suor da moeda
Ilumina-se na tempestade e escurece-se ante o sol
Permeia os cantos do eu a procura de suas sobras
Na sombra atemoriza-se pelos fantasmas adotados
Por aqueles encostados e nas gavetas amontoados
Uma vida querendo vida e buscando cheiro
Procurando luz para a foto infinita
Tentando retratar um momento longo
De felicidade não finda e de sorrisos não gratuitos
De calor não passageiro
É a guerra do existir
Existir... perpétuo desejo.

Casciano Lopes


23.8.10

Meu instrumento



Na música que dançava pelos encerados salões
Encontrei meus bandolins onde toco minhas canções
Encontrei meus amigos nos quais encosto minhas composições
Encontrei em seus ouvidos aquilo de que se esquecem meus violões 
Na música das partituras que ensaiei para despir
Possuí os pianos de caudas mais caros de Paris
Possuí os amantes pagos e gratuitos mais cobiçados das vitrines
Possuí os calores mais abrasados das chaminés e fornos espanhóis
Na música que aprendi e nunca me esqueci
Perdi a vontade de ir embora e o desejo de fugir
Perdi as paredes que guardavam a liberdade e o teto de proibir
Perdi a inocência danada e compus uma vida em sol maior.
Na música
Na música
Na minha partitura.

Casciano Lopes

Essa tal noite

A noite chega sorrateira
Senta sobre a tarde
Põe no colo o sol
Desabrocha uma negritude
Traz uma luz refletida
Ora redonda, ora novidade
Ora fermentada, ora diminuída
Caminha no silêncio
Dos ponteiros se cruzando
No alto de um céu
Escorregando vira madrugada no pulso
Esfria as ruas enquanto aquece cobertores
E de repente cede o colo à lua
Devolvendo ao chão o astro quente
Que faz manhã virar desperta
Refletindo nos olhos que ainda se vive
E que lá fora espera o dia.

Casciano Lopes

22.8.10

A amizade

Descomprometida com a franqueza, pois é natural
Sem necessidade de contato, pois transcende a carne
Ligada nos anéis do tempo, sem vista a olho nú
Descrente da cobrança, pois fere sua estrutura
Dispensa as questões, pois são sem respostas
Liberta e não prende, pois é contrária ao cárcere
Foge de egoísmos, pois esquece a posse do "eu"
Ela
Sossega uma ventania
Acalma um mar revolto
Desacelera altas temperaturas
Amansa o indomável
Sem
Angústia
Dependência
Fúria
Mágoa
A verdadeira amizade...
Lá vai ela fina como linha
Pela linha do tempo
Se mantendo verdadeira
Até na ausência de voz.
Casciano Lopes

Ciclo da rosa

A cor que já desce da pétala
Desbota no caule escorrendo
Toca o chão e tinge de cor a terra
Penetra na sua raiz tornando-a roxa
Crescendo colore futuros botões
Gestando os caules esverdeados
Manchando outras pétalas
De um perfume avermelhado.

Casciano Lopes

Mentindo

Mente

e

Crente

Sente

e

Desmente

a

Mente

Quente.

Casciano Lopes


10.8.10

Esquartejando

Cansado da lida
Rumam duas pernas talhadas de objetivo
Dois braços rebuscados de passado
Duas mãos marcadas de trabalho
As axilas vão suadas de fadiga
A boca mastiga o sonho
Dois olhos caminham em direção à meta
Os dedos fazem contas de batalha
Os ouvidos atentos provam de tudo
O cérebro executa as funções e impulsiona nervos
Do corpo que por tudo isso continua lutando.
O coração...
Esse não cansa de bombear
Muita vida, acelerando conquistas
Reservando forças para os pés cansados.

Casciano Lopes

Caixa de lápis

É de cores que faço lembrança
Colho o verde do mar
Acolho o cobalto do céu
Escolho o cinza das matas
Misturo negro e solimões
Procuro vermelho de rosa
Amarelo de girassol
Absorvo os tons de grama
O cristal do orvalho
Roubo castanho de olhos
Púrpura de lábios
Guardo o salmão dos corais
Invisto em branco de algodão
Ganho de graça fios acinzentados.
Chego a cor da saudade
Junção de cores e tempo
Aquarela para quadro do peito
Que embeleza lembranças
Dando gosto maduro
Ao coração moribundo.

Casciano Lopes

5.8.10

A cadeira e a balança

Montando o texto da vida...
Cadeira de palha
Balança e espreguiça
Estrala seus trançados
Como música na varanda.
Moço envelhecido
Cantarolando suas histórias
Tecendo seus fios de lã
Na balança da cadeira que estrala.
Dia que passa e chove
Nuvem bendita do sol que merece
Verde que emoldura tão belo
O que descansa na cadeira que balança.
Que contexto feliz
Que finito bom fim
Assistir ao longe da janela
Um velho vivido, moço envelhecido
Surrado de lutas vencidas
Não vencido recostado
Em seu estralo da cadeira que balança.

Casciano Lopes

Coração bambo

O coração desconhece o ritmo
Em segundos acelera e desacelera
Perde o compasso
Quase tonto erra o passo
Já quase surdo
Batuca mudo o sentimento
Se perde no arranjo
Desarranja a emoção
Desequilibra e quase cai do peito frágil
Em ebulição corre quente
Nas artérias seus fragmentos
Amante do que se perde
Carente do distante
Joga ilusão em suas correntes
Sacrificando seu trabalho
Amassando seus nervos
Molhando seus músculos
Para um amanhã adocicado bombear
Para acelerar rumo ao temido
De frente com o esperado
Quem sabe tonto vai banir
A esperança em troca do conquistado.

Casciano Lopes

Decifra-me

Ilumina
e
mina
a
minha


Ilumino
e
mino
o
ninho


mimo
o
sino
e
ilumino


minha
a
mina
é
minha
a
sina.

Casciano Lopes

Protesto



Pichei os olhos para mudar a visão
Do mundo caótico e descolorido
Revoltando os cabelos virei o rosto
Para marchar de costas para as estátuas.

Manchei de carvão as palmas e solas
Para decalcá-las nos palacetes de toda rua
Tingí de roxo os lábios e tatuei a nuca
Para afastar tudo o que descolore meu mundo.

Casciano Lopes

Diário de um botão

Vai dizer ao solitário
Que o botão espera a poda
Como vaso a rosa.
Diz da chuva que molhou meu chão
Fala do labutar do lavrador
Da solidão do orvalho que desceu
Da sofreguidão dos insetos
A beliscar-me o caule.
Conta-lhe que o sol aqueceu-se
Que a lua perde-se em suas fases
Que a poesia de tantos sete dias
Já fica triste pela demorada colheita.
Eu botão que de rosa me aproximo
Temo a morte e peço mesa
Dentro de uma cama solitária.

Casciano Lopes

Eu e a vista

Fiquei de costas para câmera
Para que a lente escondesse o brilho
Para que aparecesse a beleza nua
Para que não fosse óbvio o olhar

Não quis ver o que todos vêem
Não contemplar nada além da luz
Quis mudar o foco comum
Foto só e o mundo ao redor.

Casciano Lopes

4.8.10

Conselho

Que iluda-se o tempo que perde-se porque passa
Que confundam-se as nuvens porque muda suas formas
Que refaçam-se as versões das canções benditas
Que preserve-se a divisão de um choro
Respeitando os soluços.
Como a cama esteja pronto para o anoitecer
Como a carta seja lido e que possa ter destino
Como a febre encontre seu anti-térmico, analgésico
Como o herbívoro encontre verde em suas pastagens.
Queira tudo quanto se sinta no direito
Mas lute para fazer valer as vontades de sua saliva
Queira o silêncio quando bem lhe convier
Mas conviva com os gritos, especialmente os seus.
Monte os cavalos indomáveis e descubra
Que indomável é ponto de vista
Corra os castelos e perceba que crocodilos
Não o esperam em todos.
Monta um quebra-cabeças e recomece quantas vezes precisar
Fuja da velhice anunciada e aprenda que a carcaça
Tem a idade de suas idéias e o tamanho de sua coragem
Que a criança pode tudo e independe do tempo.
Esconda-se do conselho de quem não o conhece
E construa você mesmo seus mandamentos
Desrespeitando as regras
Quebre o que tiver que quebrar, se necessário até o ego.
Desmonte os circos e enxergue além das lonas
O picadeiro está lá, nem sempre o palhaço estará
Atrás do riso se esconde a lágrima
Depois da lágrima só você entende, só você pode
Endereçar a carta, seu mundo, seu rosto pintado.
Iluda-se
Mas viva
O domador
Em cada canto só seu.

Casciano Lopes

Pseudo

Teu quarto teve a luz apagada
Mesmo antes de conhecê-lo
Tua visão da vida foi tirada
Antes da apresentação formal
Teu caminho foi levado
Por estradas desconhecidas
Teus braços conheceram
A ingratidão de tua mãe
Tuas mãos reconheceram
A infelicidade de teu pai
Teus joelhos se dobraram
Ao clamor do que comer
Teus olhos choraram o leite
Recebendo a intolerância
Teu coração ainda muito cedo
Conheceu o desamor
Tua memória não guarda
Retrato de mesa farta
Tua febre foi aplacada
Pelo frio da sociedade
Teu choro menosprezado
Pelo líder da nação
Tuas lembranças não trazem
Imagens de doce família
Teu cobertor de passar frio
Traz notícias de crueldade
Tua crueldade vivida...
Como te chamam:
Menor abandonado.

Casciano Lopes

Mensageiro



Correndo o trem
Leva apressado
Gibis e fotografias
Tinge de tom barulhento
O fim de tarde
Da manhã ao dia inteiro
E a noite
Leva brinquedos e datas
Vai correspondendo
Leva e trás
Pára e continua
A batucada do trilho
Quente ou molhado
Aço duro
Cheio de gente
Túneis e retas
Plataformas e bagagens.
Chega à porta
Pode entrar, pode sentar
Conversar se conseguir
Ela passa correndo
Paisagem acinzentada
Ai que medo!
Morte e vida tão pertinho
Tão carga rica
Curta a pobreza
Sobrevivência perseguindo
Todos vivos...
Até o trem
Que sacoleja minha janela
Trazendo lembranças
Dentro da mala.

Casciano Lopes

Para a menina das importâncias

Dedicada à amiga Letícia... Minha Lele

Vai...
A platéia da poesia
As caras desenhadas
O amor possível
O aprendizado da admiração
Sim tem que aprender...
Depois admirar
A conquista do tempo em recordes
Rápida como capacidade
Capaz como nascimento
Nascendo do espontâneo
A graça gratuita
O tamanho das importâncias
Vai tudo feito crônica.
Fica...
O tudo vale a pena
Sorrir sim...
Chorar questão necessária
Voltar a sorrir
Questão fundamental
Sempre abolir o que tira o sono
Jamais inserir o que não preenche linhas
Elaborar antes de um não
Pensar depois de um sim
Julgar apenas o que não cabe nos bolsos
Sabendo
Que o sorriso embeleza
O sol transforma
E a poesia responde.

Casciano Lopes