22.3.12

Anjo



Não há barreiras em minha terra
A serra transponho
Na lua rodopio
No sol sinto frio
Nas águas adormeço
Meu berço é onda
Minha santa me sonda
Tomba seu azul
Me embala...
Me guia...

Eu já guio o que sei
O que tive e terei
Já tenho o que guardo
Já guardo o que é meu
Eu sei.

Casciano Lopes

21.3.12

Todo dia

Eu preciso...
De alguém com coração caloroso
E que de bom grado divida-o comigo
Que tenha nas mãos os calos de solidão
Para nunca querer estar ou deixar só
Que goste de contar meus fios de cabelos brancos
Antes que se tornem incontáveis
E que conte mais de uma vez
Tantas quantas eu adormeça antes do resultado
Eu preciso de um bom dia todo dia
Eu preciso...
Retribuir o aprendizado
Enquanto aprendo existindo.

Casciano Lopes

Compromisso

Chegou ao portão apressada como atrasada
Aos poucos começou caminhar de pouco
Divagando pelos passos por um tempo
Antigo quem sabe ou de recente passado
Emocionada demais para se conduzir
Parava apoiada nas esculturas de esquinas
Descansava nos passeios estreitos dos guardados
Nas frases de outros passados e nos buquês...
Alguns frescos recém visitados
E outros murchos de passado sem gente
Levantou os olhos e contemplou o silêncio
Algo como um livro de memórias
Discorreu pelas páginas e seus capítulos
Fechava e abria o livro
Leu o prefácio e seu autor
Assoprou algumas empoeiradas palavras
Sem visitas ou desperdiçadas leituras
Voltou para entender histórias
E leu quantas vezes precisou ler...
Lembrou-se do porque estar ali e apressou-se
Agitou as pernas pelos passeios da cidade vazia
Assim como os dedos pelas páginas do livro
Chegou ao título que buscava, mesmo sobrenome
O mais que conhecido...
O presente ausente que insistia em não ser passado
Sentou-se na grama verde e bem cuidada
Depositou um lindo arranjo de cravos
E chorou por ter sido deixada para trás
Registrou na lápide mais um risco de saudade
Contabilizando os anos que separam vida e morte
E a distância entre amando e amado...

Casciano Lopes

13.3.12

Distante

Vive só e distante
O que dista o corpo do toque
Vaga moribundo um olhar
Perdido em qualquer imensidão
Nada no aquário desprovido de peixes
As perguntas borbulhantes que não calam
De longe os uivos de animais quase extintos
Feito sentimentos ainda clamam por eles
Precisa-se de uma jaula habitada
Só, está enjaulado sem grades ou cadeado
Sem trancas e não foge
Quer só a mesma jaula habitada
Por eles... Os sentidos e seus corpos
Antes de ser extinta... A paixão pela vida.

Casciano Lopes

9.3.12

Solo em grito

O pranto que lamenta a morte
Ecoa em dor balbuciada palavra
A que acolhe e protege
Agora apela à lágrima
Salgando a procura de seu quinhão
Seu pedaço tirado à força
Sua carne rasgada a cru
Bruta força, desfalece a alma


Roubadas... Como as da Sé
Das guerras
Afanadas... Como as das drogas
Do crime
Esquecidas... Como as de Maio
Da Candelária
Desprotegidas... Como as da seca
Carandirus.


Suas perdas...
O inodoro e insípido
O sem sentido viver 
Seus leites petrificados
Seus ausentes
Presentes nos adornos
Lembranças desejadas
No partir e repartir.


Mãe...


O lugar onde a inocência é interpretada antes da pedrada
Onde a consciência vem acompanhada do bom juízo
Onde a medida é com justiça colocada na balança
Onde a divisão é feita desde que não reparta o filho
Onde se doa para longe desde que permaneça a vida
Onde não se perdem princípios em troca de mentiras
Onde no lamento da espada por amor se empresta à dor.


Para que viva o filho...


Casciano Lopes

8.3.12

Vestido estampado

Cai como uma luva as estampas tecidas em curvas
Desce como santo, o tecido agora vestido
Destila seu tom azul que misturado ao bege
Junta-se ao roxo riscado de preto, transpassando o branco
E assim desfila vestido florido, estampado, ramado
O que acompanha o jogo das ancas e a cadência da cor

Como da mesma forma a terra vestindo azuis, brancos, verdes
Se enche de cores e jeitos, põe seu estampado e rodopia
Se mostra em elipse, eclipse e mistura os tons
Na soma dos credos, das etnias e classes se ergue e se mostra
Faz um colorido que sustenta na gravidade a esfera
Assim como o tal vestido, vestindo-se de estampado se despe...

Dos preconceitos

Casciano Lopes

5.3.12

Paisagem cercada

As cercas separam e farpam
Os chifres e os que eles afagam
Mandam na grama
Na que forma a lama
Divide a varanda e a cana
Destoa a tarde no fim de quem ama
Entoa o sol que já não reclama
Elas testemunham camisas que rasgam
Prendem os cós e despem os que lutam
Cercas... Aquelas que cercam
Animosidade e os que tocos fincam
Os que vão e os que ficam
As telas e os que pintam
As farpadas que separam.


Casciano Lopes

29.2.12

Credo

Eu sou aquele cara...
Que acredita mesmo quando não há evidências,
Quando falta a fé a tantos... Ah eu acredito!
Surreal ou temporal,
Distante do que ata
Ou perto do que amarra,
Desatando os sonhos
Ou carregando os feixes,
Ah eu acredito!
Talvez assim vivendo
E por acreditar tanto,
Ainda levo um coração de crenças,
Dois olhos de piedade,
Duas mãos de poesias
E dois pés na direção
Do ato de todo dia ditar a ata
Da reunião de pensamentos,
Da fusão de tantos sentimentos
Que me fazem de novo acreditar.


Casciano Lopes

28.2.12

Tudo se faz novo

É o novo...
Novo interesse
Nova realidade...


É o novo que me move
Construir para reconstruir
A surpresa da desconstrução
A alegria da alvenaria se erguendo
A justa fé do ferro
A lida do cimento
E a liga do movimento
Tão destrutível quanto inflexível
A licitude das coisas
A permissividade do impossível
E a possibilidade de ser
Épico ou pura ficção
Importando apenas
O que vai na imaginação.


Do amanhã só a certeza
E a falta dessa certeza
Em cada manhã é o que gera vida.


Casciano Lopes

24.2.12

Deficiente...

Deficiência...
É não saber mais abanar as mãos para dizer adeus
É não sorrir quando te molham perto da piscina
É se perder no caminho e não aproveitar para conhecê-lo
É negligenciar um sono esquecido de ir embora.


Deficiência...
É esquecer o riso numa preocupação
E não se preocupar com isso
É se esconder para lamber a calda de chocolate dos dedos
E achar que isso é normal
É se lembrar atrasado de que não deu bom dia ao seu amor
E não ligar... Deixar para amanhã
É achar que um aniversário dispensa abraços mas não presentes
E depois prefere trocar do que doar.

Deficiência...
É ter medo de ser chamado de bobo porque riu sozinho
De louco porque gosta de conversar com os pensamentos
De gay porque sentiu vontade de beijar o rosto do amigo
De infantil porque quis chorar ao prender o dedo na porta.

Isso é deficiência.

O pecado que faz do homem
Um portador de necessidades especiais.

Casciano Lopes


16.2.12

Desde o nascimento

Nos cercam as medidas...
O peso, a métrica
Os miligramas, os cercados
Os tamanhos...
Os...
Crescemos
E nos acompanham
O ideal, o perfeito
O equilíbrio, o permitido
O necessário, o suficiente
O que a 'educação' reconhece...
Envelhecemos...
As mãos só tateiam
Os pés tropeçam
A visão escurece
A memória enfraquece
Ai...
O copo transborda
As calças caem
Os óculos se quebram
E a gente se esquece das medidas
Só ficam...
Certezas...
De que tudo deveria ter sido desmedido
De que acabou rápido demais
Porque talvez perdeu-se muito tempo
Medindo as coisas...


Casciano Lopes

Culpado

E no frasco
Cor de mel
Um  carrasco
Tom de fel.

Pasmo eu
E o astro céu
No rastro
Do perfume réu.

Casciano Lopes

10.2.12

Transparência

Tem dias em que muda de cor
Deixando pálidas minhas paredes
Torturando a incandescente lâmpada
Polindo em brilho minhas pupilas
Marejando em sais as tais
E alucinando em versos o quarto escuro
Parece transparente a sensível ao toque
Vê-se o interior de meu interior
E as ideias já se confundem com ideais
As emocionais com cerebrais
E o suor se junta ao pranto
Joelhos num canto
Implorando e pedindo ao santo
Que cesse..
Ela que detona meus reboques
Dilacera minhas sapatas
E rouba minhas tintas
De maquiar ou esverdear o mundo
De paredes...
Hoje pálidas...
A dor.


Casciano Lopes




9.2.12

Oração de um sertanejo

Pru que? Ora pois...
Me arrespondi criadô
Pru que nóis vivi ansim
Perdidu e jogadu
Di um ladu pu oto...
Num somo dotô
Num somo sinhô
Male má caminhamu
Pru cima da terra
Isquicido e bem duídu
A fome levô as gordura
Só osso deixô Sinhô!
Lata vazia...
Ais vazia di comê enferrujô
Pru que? Me arrespondi...
Fiz tantu fio
Tanta choradera nu uvido
Tantu roçado carpi
Tanta farinha comí
Pru que Sinhô?
Pru que vivo?
Se inté minha roça secô
Minha dona o chão iscondeu
Os fio isqueceu du véio
Acho inté que um é dotô
O soli vem lá das banda do norti
Me arresseca a vista no caminhu
Em quando em vez se alevanta um pueirão
O véio corri carça a bota
Chapé de paia e leite de rosa
Qui nada...
Carrão vai direto potras banda
Divia se oto dotô
Ahhh Sinhô...
Esse véio seu criado tá cansadu
Se pudé e o Sinhô achá que dé
Dá força nos braço na moenda
Pa trabaiá o que sobrô
Cedinho lá nos grão pa vê si vivo
Oto dia ansim como isturdia
Guardi minha famia di longe
E não disampari o caipira de pertu
Amém e inté.


Casciano Lopes

De frente com o tempo

Nas ranhuras de meu tempo,
Esculpidas e bem marcadas
Na face que hoje trago viva,
Tenho todas as histórias...
As vivas, as mortas,
As convalescentes,
E as anestesiadas.
Tenho as lendas e os fatos,
As dívidas e os tributos,
A descrença tão perto do beato,
Ausência tão presa à existência.
Tenho nos sulcos dessas ranhuras
Todas as tempestades,
As intempéries do clima,
O desamor ínfimo dos homens,
A razão sócia da emoção.
Os olhos que emolduram a textura
Já são quase da cor dos cabelos,
E os grisalhos que destoam da mente
Já quase conseguem desbotar o tato.
E as ranhuras...
Essas continuam acumulando nos vincos
Uma certeza...
Desce-se aos vales quanto for necessário,
Há um momento em que a subida só é possível,
Se as raízes forem saudáveis,
Adubadas e bem fincadas nas mesmas ranhuras.


Casciano Lopes

8.2.12

Ciclo da dor

É necessário que a terra sofra
Que a chibanca cave seu solo
Desobstrua sua raízes,
Tem o tempo de seca
Fartura de água
Racionamento
Transbordamento,
Vem o calor do astro
O breu sem lua
E a cheia toda nua
Sofre as dores do parto
Brota frágil e esverdeada
Sua cria mais doída,
Cresce, preocupa a mãe
Terra
Vem os algozes insetos
Pragas e maldições
E ela
A terra
Emana seu potencial
Amamenta, alimenta
Sua obra
Que se enche de espinhos
Afasta a mortalidade
E faz brotar seus botões
Que desabrocham em rubro
Branco, amarelo, carmim
Perfumam o vaso, a casa,
A dama e o roseiral
Enchendo de pétalas seu chão
E de orgulho sua criação
E o recomeço faz o dever
Na terra das cavidades
Rachaduras e inundações
Onde o ciclo se faz novo
Onde primeiro vem a dor
Para depois brotar a flor.


Casciano Lopes



Enxergando a poesia

A poesia é mesmo algo que transcende
toda essência
Quando se senta à beira do caminho
traz quietude
Em cima do telhado não só calmaria
também tempestade
Ora faz alarde feito tambor vazio rolando
ladeira abaixo
Ora traz o sossego do silêncio
embala o sono
Quando ferem a face do descuido ela
estanca o sangrar
Outras vezes arranca gemidos da alva face
que põe-se a chorar
As letras codificadas ou desvestidas são
artimanhas dela
Dizeres, saberes, sentimentos cálidos
profundos ou rasos
Solfeja como um mantra a cascata
melodiosa das águas
Como também nas cascatas: a mentira e balela
disfarça seu mal
Empresta a palavra o direito de ir, muitas vezes perdendo o
de vir
Se senta nas linhas sua forma regrada
encontra quem gosta
Se foge dos espaços e deforma seu traço também alivia 
o peso da gente
A poesia, esta senhora elegante...
Que tanto serve aos iguais quanto aos
deselegantes
Que amaldiçoa e abençoa em fração
de versos
Ilumina elevando 
a lamparina
 outras vezes faz-se negro
escondendo a vela
Ah poesia...
Se não fosses tu
Caprichosa e delicada
Talvez naquele inverno
Não tivesse trazido
E eu conhecido
Na porta de um bar
O grande amor de minha vida
Hoje a razão de minhas letras
Meus dizeres múltiplos
Com várias interpretações
Para mais de mil leitores
De mil leituras
Mas...
Com uma única intenção
A do poeta
A do amor
A da poesia.

Casciano Lopes

5.2.12

Desnudo amor

O amor
É uma moça deitada
Nua toda sua nudez
No ímpeto de seu seio
Desejo em riste.
O amor
É um termômetro
Abastecido por madeira
Abraseada de fornalha
Ponteiro elevado.
O amor
É a travessia do cego
No banir das ondas
Lavando a cintura
Curando o tato.
O amor
É o cheiro suado
Bandido, molhado
Sobre o corpo
Daquela moça nua.


Casciano Lopes

2.2.12

Branco anil

Meu Brasil varonil
É como os varais
Em branco anil
Dos meus ideais.


Azul celeste da veste
Que despe e veste varais
Farpados em agreste
Em fundos de quintais.


Verde grama e animais
Na sombra do cipreste
Atrás de seus umbrais
Quarando em chão nordeste.


De brancura e inconteste
Esvoaçando aos litorais
Gotejando em sudoeste
Ensolarada em noroeste.


Todas claras nos varais
As cores da terra silvestre
Semeadas em pedregais
Ou brotadas do rupestre.


Casciano Lopes

Certeza de quê?

O que é certo?
Certo é descer o que se empurra na ladeira
O que não é ladeira depende de nível
Se sobe ou desce
Se inclina à direita ou esquerda
Só a inclinação dirá
A olho nu tudo fica fácil
Difícil é o que se esconde
O que se mete sob a superfície
Gosto do que é nu
Palpável na certeza dos olhos.
Há dias que fico incerto
Me perco em incertezas olhando o chão
Sem nível na mão
Procurando as medidas da inclinação
O colorido furta cor
Embaralha as certezas
Como em mãos de mágico as cartas.
A palavra que desce tesa é a certeza
Busco meu nível e não encontro
Não há outra saída
A não ser mais uma vez ser desmedido
Um cheio de incertezas
E assim sendo
Enquanto houver vida
Sentirei nos calcanhares
Os declives e aclives desse chão
Tão cheio de certezas
Nas incertezas das mãos sem nível.

Casciano Lopes

Nascido em choro

Eu chorei,
Porque nasci livre do ventre enquanto tantos não.
Pelos não nascidos, frágeis e desnutridos.
Pelos órfãos deixados para trás do crime.
Pela fome itinerante dos retirantes.
Chorei,
Por ver um bicho na cidade revolvendo uma lixeira,
Me aproximei e como eu, o bicho era humano.
Porque um amor quis morrer ao meu lado.
Por um amigo que adoeceu distante de meus braços.
Chorei,
Por ver sofrer minha deusa, minha mãe.
Pelos leitos acamados os sem destinos planejados.
Pela morte de um ídolo, 'minha Cássia'.
Por um garoto de 17 anos que foi embora cedo demais.
Chorei,
Porque no meu bolso não tinha nada, enquanto
Numa mão miúda um pão bolorento enchia-lhe os olhos.
Porque uma paixão me iludiu e logo sumiu.
Porque um anjo acudiu meu pai quando este caiu.
Chorei,
Pois vi um pai cortado e revivido pelas mãos de santos.
Por ver uma menina amada se entregar ao acaso e sofrer
E depois ver a menina ser reconstruída e virar mulher.
Por ver nascer quatro botões em meu jardim, são meus.


Enfim,
Chorei, chorei, chorei...
Descobri que o choro aduba o sorriso vindouro.
Que para sempre é somente o que a vista enxerga.
Que é na lágrima que a humanidade guarda seu bem precioso.
Meus amigos, amores, bem querer e meu mundo de gente,
Precisam de meu choro, meu precioso, meu mundo melhor.


Casciano Lopes

26.1.12

Preito

A fera que descansa em meu peito
É a mesma que fere meu jeito
Contorce sem cura a febre de leito
Amortece em jura o ai do mal feito...


Eu aqui sujeito
Imperfeito
Da agrura eleito
A despeito
Respeito
Satisfeito
A fissura
E a tristura
Sem perder a mesura
De fazer proveito
De todo defeito.


Casciano Lopes

16.1.12

Manto uno

Muito tênue...
A linha que divide um país
A fenda que parte uma ilha
A rachadura que desloca um bloco
O tremor que racha um continente
O temor que separa culturas.
O mesmo sentido de vida...
Pulsado em cada canto de olhar
Que morre largado ou abrigado
Como vive cercado ou alagado
Que chora da mesma forma amada
Como sorri com beleza espalmada
A mesma junção de instrumentos...
Aborígenes
Índios
Esquimós
Beduínos
Negros
Brancos
Incas de seus Maias com seus Astecas
Uma África com suas índias americanas
Tão latina quanto européia suas asiáticas.
Tão sul quanto norte seu centro oeste
Latitudes e longitudes com seus trópicos
Hemisférios com seus polos em sementes
Seus rios em pólen e suas colmeias em línguas
Tão raça quanto humano no pulsar
De oceanos verdes, azuis turvados
Do mesmo sentir, da mesma forma de navegar,
Quebrando ondas na costa, nas pedras,
Nas areias do mesmo mundo
Do mesmo sentido da poesia
Na construção da pele única como um manto
Enxergando belo com a beleza dos retalhos.


Casciano Lopes

13.1.12

Brasil sem herança

Não reconheci sua etnia
Não ouvi a sua língua
Não vi seu mundo
Não passei por sua oca.


Sem o verde das matas
Sem lenha ou tora
Sem fogo, sem barro
Sem seios ou rituais.


Sem face ou tintas
Sem caça e música
Sem meninos na cintura
Sem mitos e "Deuses".


Sentada, bem ali, na passagem do "cidadão civilizado", numa rua qualquer do bairro da Lapa, da grande cidade que recebe o nome de São Paulo, estava ela: uma linda índia, pele de índia, cor de índia, de cócoras como uma índia, os traços eram indígenas.

Só não era de índia: a roupa maltrapilha que usava, o chão de concreto que pisava. Não era de índia: os brancos que a ignoravam. Não era indígena: a vergonha do país, as poucas moedas que estavam ali numa vasilha substituindo os típicos pratos feitos de cócoras lá na aldeia.
Não era indígena!

Não era coisa de índio...
Sem arco e flecha...
Sem cacique...
Sem água doce...
Era coisa de Brasil!

Um país sem herança...
Sem cores...
Sem memória...
Sem vermelho na terra...
Coisas de Brasil.

Casciano Lopes




Em meados de janeiro deste ano [2012] recebi, por e-mail, um convite do jornalista romeno DANIEL DRAGOMIRESCU para seguir o blog de uma revista multicultural  (CONTEMPORARY LITERARY HORIZON  [Horizonte Literário Contemporâneo] Official media partner of MTTLC, University of Bucharest) que reúne escritores de todo o mundo, apaixonados pela cultura contemporânea. A HLC é uma revista independente e publicada em quatro idiomas, Romeno, Inglês, Espanhol e Português e conta com o apoio da Universidade de Bucarest.
Na mesma ocasião, Daniel, o editor chefe da revista, solicitou que eu contribuísse com um trabalho para a revista. Enviei o poema [Brasil sem herança] que transcrevo abaixo e que fala de uma faceta da nossa cultura onde vemos elementos e personagens étnicos deslocados e desvalorizados em nosso meio, especialmente o urbano que devora o natural. Esse poema foi publicado no número 1 (27)/2012 da HLC em português e romeno.
Na revista on line é possível conhecer o trabalho de outros poetas e escritores brasileiros como: Oziella Inocêncio (jornalista e colaboradora da revista, de Campina Grande), Vogaluz Miranda (de São Paulo), entre outros. Para quem quiser conhecer e prestigiar o bonito trabalho desenvolvido pela equipe da HLC basta acessar http://contemporaryhorizon.blogspot.com. Vale a pena.

12.1.12

O sonho de meu medo

Minha vida toda
Meus embaixos
Meus baixos
Meu tempo de sul.
Nem sei se quero
Ir para o norte
O sul tem raízes
O que se avista.


Tanto medo
Quanto saudade
Sonho quanto insônia.
Leio o que toca as mãos
O que perdeu-se da pele.
Gosto de meu sul
Mas sinto falta...
De meu pulso.


Casciano Lopes

Seguindo as regras

Canso de gentilezas com o desconhecido,
Abraço e beijo o tal conhecido,
Mas me interroga a natureza.
Tão descabida se torna a franqueza,
Meu rosto sorri ante o povo que construí
Impeço em súplicas mais um momento,
E ele acontece, por cima de minhas vontades,
Como se rolasse em compressor a minha procura,
Me fazendo humor da tortura,
Arranhando a alma que pede fim ou recomeço.
Me agonia o bem fingido,
Fico mal com o não resolvido,
E o filme rola as cenas,
Aos de minhas poltronas gastas.
Me acordam os pesadelos da fama,
Machuca a ânsia de viver cada personagem,
E me sinto dirigido pelo que desacredito,
Sou câmera e volante do destino pastelão,
Sou o peixe engasgado do anzol,
Da linha o cerol,
Da pipa cortada o voo cego plainando,
Sobre árvores desconhecidas,
Se nelas me enrosco, morro só...
Se a deriva vou no vento, morro fisgado.

Casciano Lopes

11.1.12

Complexo ato

É como tango latejando em meus compassos
Me fazendo imaginar o indizível da dança...
Aquela elegância gesticulada
Os corpos geminados
Sem se quer ter ensaiado um passo
Sem ter pousado em Buenos Aires
E de Gardel apenas canções ouvidas
Em vitrolas distantes.
É o espetáculo encenado em teatros jamais vistos
Tablados montados em salas da ficção
O espaço cultural da arte imaginária
De um cérebro desprovido de ócio
Toque melodioso, com dedos e sem piano
O vago, o misterioso.
É a imagem que se forma, que se vai
Aquela que acorda e desperta
O ser em movimento repousado
Transloca e desloca o órgão
Levado de toque em toque
Sensação fria de ardor fugaz
Temor que cai, corta e sai.
Viagem por castelos e Europa
Medievais, bosques, expressão de séculos
Em gemidos de arquitetura
Talhada, pintada de ilusão
Realidade difusa, confusa, lambuza as mãos
Molha, salga e adocica, amarga o êxtase
A solidão...
Visível na pele rachada
Tachada de eu
Conjugada na primeira pessoa do tempo rasgado
Do complexo comigo.


Casciano Lopes

Revisão

Neste tempo procuro reconhecer
As dobraduras de minhas roupas
E me perco entre velhas costuras.


Descubro em cada palpitar
Que o passado de cada dia
O tornam mais interessante.


Vivo, para ver e sentir o cheiro,
Em cada suspiro respiro vontades
E inspiro soluços de amanhã.


Passando a limpo os ditados escolares,
Os ditos populares e os que encontro
Pelos bolsos da velha calça.


De novo reinvento meu homem,
Novo, vestido de novo, sem abandonar
O velho ontem, um ontem qualquer.


Casciano Lopes

10.1.12

Caminhos

O pior dos caminhos é o solitário
O faltante da mesa
O caminhante que não chega
A refeição só
O pão só
A sede da garganta
A falta de com que molhar
A velha cadeira abandonada
O balanço sem corpo pra impulso.
O pior dos caminhos é o escuro
Tateando cego os espinhos
As serpentes esmagadas ou não
As trombadas sentidas e não vistas
As lágrimas brotadas sem vistas
Os joelhos cicatrizados do embate
O combate das guias, dos guias e sinais
Fechados, cerrados, nunca abertos.
O pior dos caminhos é o desequilibrado
Os tombos públicos não acudidos
A sepultura viva dos cárceres
A lápide que sela em vida um ser
As correntes que crucificam loucos
A perseguição do entorpecido
O enjaulado dos quartos em porões
O delírio dos que perderam suas próprias escrituras.
O melhor dos caminhos...
Se deixar ferir sem nunca perder a consciência do bem
Permitir uma ferida, só até onde consiga a cura
E nunca faltar pão, muito menos com quem dividi-lo.


Casciano Lopes

Dias intensos

Dias intensos, independem de condições meteorológicas, dependem puramente de sentimentos intensos.
Há verão na minha vida, de sol escaldante, como há dias, de inverno causticante nos ossos da alma.
Há dias, em que penso a vida como quem mastiga um rolo de fumo, que divago no tempo, como quem tempo não tem para arrependimentos.
Nunca me senti tão só, como hoje me sinto. A temperatura fugiu dos termômetros e a vista divaga perdida por sobre os ombros, buscando só uma visão, mesmo que miragem, de um perdido qualquer que faça companhia ao órfão colo.
A falsa liberdade a mim imposta, aposta no cárcere de meus pés e na branquidão de meus cabelos torpes, delira minha pele e as cores enegrecem dentro de um navio submerso no oceano de meu peito, os dedos já embrutecidos encostam só a porta solitária de uma brecha perdida dos caminhos sem volta, olhos parados tentam empurrar meus submarinos pelo que acreditam.
Quanto frio nos nervos de minha terra! Quanta composição esquecida e quanta letra não desenhada! Quanta lentidão em meus sistemas! Quantas amoras guardadas no celeiro da colheita passada!
Sinto a calma ralentando e a música mais que triste sussurrando aos ouvidos seu enfado. Conta fados e canta seus portugueses lamentos, tendo meu chão como palco, meu quinhão rachado e encoberto por daninhas famintas, que me lascam os calcanhares.
Intenso como tenso meu inverno, descoberta a coragem fracassada e desafia a alma não mais ensolarada a dar mais um suspiro afinado, a cobrir de verde um jardim tão desmatado e a plantar nas covas a semente do verão passado.
Que me ajudem abutres, se me falharem os homens, no plantio e na colheita desse intenso...

Casciano Lopes

Morro ou morro?

Morro...
Presente nas ruelas,
Dos becos sem saída,
Dos guetos do feio,
Das estreitas passagens,
De apertadas paredes,
De portas caiadas sem luxo,
De esconder fúnebre destino.
Morro...
Ausente da cidade,
Corcova a vista de tábuas,
Embelezando a distância do horizonte,
Morrendo morro na vizinhança,
Desgraçando a beleza nos remendos,
Nos tijolos a vista,
Não vermelhinhos encerados,
Mas sem vida de reboque,
Sem trato e projetos.
Avariado pelo que dizem social,
Vida do jeitinho,
Das sobras do possível,
Futuro sem caminho,
O aperto sem luz ou túnel,
Da morte, um morro de divisor,
Um arco estacado no asfalto,
Um invisível "Berlim".
Sentido...
Morro acima gente sobe viva
Pra morro abaixo descer pobre.
Todo dia morro...
Todo dia...
Morro.


Casciano Lopes

Água de luto

A tempestade veio banindo num assobio
A luz do dia e as folhas secas da estrada,
Regendo ventos que num crescente
Passaram de calmos e rasteiros para bravos e ceifeiros,
Deixando árvores como arbustos e estes como grama.
O céu já não mais tomado de seus azuis
Deu lugar ao arroxeado sem estrelas
Que logo se enegreceu de luto,
Sem pedir licença, desceu à lavar toda lua,
Todo o sol. Enquanto se desmanchavam nuvens,
Pássaros de penas e de aço banhavam-se
Na imensidão de águas doces de mares suspensos,
Enquanto no fim da queda, quebravam suas ondas
No pasto que se embebedava ou no rio que transbordava.
Numa encruzilhada de terra batida já sem sua relva,
Três figuras imóveis observavam o desmantelo:
A santa branca do caminho,
A cruz de estacas fincada
E a lembrança que plantou a cruz.


Casciano Lopes